segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Ivan Lessa: A mentira do estrangeiro



Ao completar 32 anos morando em Londres, colunista se confronta com a realidade.

Colunista da BBC Brasil - O primeiro-ministro Gordon Brown, do Reino Unido, não existe. O líder do partido Conservador, David Cameron, não existe. O comitê Chilcot que investiga as antecedências e as circunstâncias que levaram a Grã-Bretanha a invadir o Iraque não tem a menor importância. O estado de alerta severo decretado neste país em relação à possibilidade de uma ação terrorista em seu território é falso. Todos esses campeonatos de futebol são de fingimento. Arsenal, Chelsea, Fulham, Manchester United: nenhum deles é para valer. Pura enganação.

A humanidade suporta tudo quanto é espécie de irrealidade.

Estou completando 32 anos seguidos de Londres. De Londres, repito. O resto que cerca a cidade, país, ou países afora (de Gales, Escócia, Irlanda do Norte), não é mais que uma ilusão. Dessas ilusões de maus romances e sambas-canções esquecíveis. Ouso mesmo abrir minhas asas e me expandir - e por que não? - até a Comunidade Europeia. Mais coisa para inglês ver, participar, ler, escrever a respeito, opinar concordando ou discordando nos bares e esquinas. Pouquíssimo a ver com a persistência inegável dos fatos. Tudo isso inexiste.

32 anos seguidos de Londres, dizia eu. Insisto eu e eles em mim. Não vejo a menor razão de ser nisso tudo que se passou e passa. Do que enumerei e do que consta todos os dias nos jornais que leio e nos telenoticiários que vejo, Deve ser isso a que chamam de limbo. Se limbo for, nele estou há 32 anos seguidos. De enfiada.

Falo a língua local razoavelmente. Entendo talvez mais que 90% do que me dizem as supostas pessoas locais e os meios de comunicação. É pouco, muito pouco. A verdade passou e eu mal reparei. Lembro-me da verdade como se fosse hoje. Graças à informática, de uns dez anos para cá passei a conviver com ela ligeiramente. Cumprimentá-la. Querer saber dela. Mais ou menos como perguntar como vão as coisas a uma antiga namorada.

Os britânicos. Não passam de celebridades. São todos celebridades. Mesmo sem casa de Big Brother. Estou cercado de celebridades. Brangelinas todas e todos. Celebridades intangíveis pegando metrô. Celebridades fazendo compras nos supermercados. Celebridades passando atarefadas por mim na rua. Sem me olhar, sem que eu olhe para elas. Não estamos interessados um no outro.

Nos mais diversos sentidos, celebridades são todas aquelas pessoas que nasceram aqui e por aqui vivem e moram. Confesso uma certa admiração por elas. Pertencer a um lugar deve ser a satisfação que George Clooney ou Meryl Streep sentem quando participam de um show destinado a angariar fundos para o Haiti. Ô como estão à vontade na vida Bono e Madonna! Admirável ter essa certeza, afirmar, louvar, cantar o simples e terrível fato de que o Haiti não é aqui nem acolá. O Haiti é, pobrezinho, no Haiti. Salvem-no, celebridades de outras terras, salvem-no o mais cedo e o quanto puderem. As celebridades menores, essas em torno de mim e em minhas cercanias, podem doar dinheiro pelo telefone. Ouvi dizer que, com sorte e por uma boa quantia, é possível até mesmo falar ao telefone com Jack Nicholson.

E o Haiti lá. O tempo todo. Esperando. E esperando.

Peguei esse desvio, fui até a esquina comprar jornal e só agora chego, distraído, meio envergonhado, aonde eu queria chegar. Ao Brasil.

O Brasil é aí. O Brasil não é aqui, Todos os fatos conspiram para esse fato.

Pondo os pontos nos ii e os tremas onde não os há mais: aqui houve nevascas e o país quase parou por uns dias. Vi e conferi da janela. Parecia direitinho verdade. O estrangeiro prega essas peças nos sentidos de quem nele se instalou. Bem feito. Eu deveria ter ficado na mesa de um botequim na Tijuca tomando umas birinaites e reclamando dos quase 40º à sombra.

Comentaria com o companheiro sentado em frente que é uma vergonha deixarem os bueiros entupirem. Que esse governo, "olha, vou te contar". Que as enchentes e os deslizamentos pegam muito mal e só contribuem para empanar nossa imagem no exterior. Em seguida, faria um comentário leviano sobre esse tiroteio que causou pânico no forró da zona oeste do Rio. Falaria um pouco sobre essa ou aquela moça de telenovela. "E o Botafogo, hem?", finalmente puxando o papo para algo mais sério.

Perdi o direito a isso tudo. Por livre e espontânea vontade. À noite, curtindo a insônia, busco consolo no fato de ser um de meus poucos conterrâneos, aqui nesse lugar de mentirinha residente, que preservou o passaporte que não engana ninguém e que é aquele com que nasci. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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