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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Por que a obra de Freyre é para sempre - Fernando Henrique Cardoso

Conteúdo e forma garantem a perene harmonia de Casa-Grande & Senzala


Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo

Com a conferência Gilberto Freyre, Perene, a cargo do sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tem início a programação da Flip 2010. Acompanhado do historiador Luiz Felipe de Alencastro, como debatedor, Fernando Henrique mergulha na obra freyriana, realçando o que há de seminal e contraditório no autor de Casa-Grande & Senzala. Com exclusividade, o Estado antecipa o trecho inicial da conferência, que acontece hoje, às 19 horas, em Paraty.

Não é a primeira vez que falo sobre Gilberto Freyre e cada vez que me convidam para falar ou escrever sobre ele fico na dúvida sobre se deveria ou não aceitar o desafio. Não há motivos especiais para que seja eu quem abra nesta Flip a semana de comemorações discorrendo sobre o homenageado: pois não fomos nós, os chamados sociólogos da escola paulista, Florestan Fernandes à frente, quem mais criticamos aspectos importantes da obra gilbertiana, notadamente a existência de uma democracia racial no Brasil, interpretação frequentemente atribuída a ele?

E ao longo de minha carreira profissional (já vão quase 60 anos de lida com as questões sociais) tampouco me distingui por ser um conhecedor da vasta bibliografia de nosso homenageado. Não obstante, mesmo com escusas de sobra para escapar da incumbência, caio novamente na tentação: quem sabe ao me aproximar de tão gabado autor me sobrem umas lasquinhas de glória...

Cada vez que volto à obra de Gilberto Freyre se repete o deslumbramento de descobrir facetas novas em seus escritos e de me deixar encantar pelo modo como ele envolve o leitor e quase o convence de suas teses, mesmo quando está navegando por mares cheios de escolhos e aprumando para portos que não parecem os mais seguros. Já escrevi que me indignei comigo quando li em El Mercúrio, no Chile ainda dominado pelos coveiros de Allende, um discurso de Jorge Luis Borges e me deixei fascinar por sua prosa. Borges, ele mesmo um arquiconservador, agradecia uma homenagem que recebera de uma academia chilena silenciosa diante da brutalidade pinochetiana. Discorreu sobre a língua espanhola. A beleza das palavras, a graça de seu encadeamento, o inesperado das metáforas, o brilho do talento do escritor argentino me fizeram esquecer quem era o homenageado, quem o homenageava e em quais circunstâncias. Não é possível, pensei, que o senso estético me afaste tanto da moral.

Por sorte, a semelhança com a situação de leitura de Gilberto Freyre não implica, nem de longe, tal permissividade. A comparação estanca na fruição da beleza, sem que o conservadorismo de Freyre e mesmo seus comprometimentos com situações autoritárias recordem o horror chileno de Pinochet. Não preciso me sentir moralmente culpado por deixar-me embalar pela prosa de Freyre, ainda quando possa vislumbrar a fragilidade factual ou mesmo interpretativa de um ou outro argumento do autor. Nem me molesta ressaltar as virtudes literárias de alguém, como Freyre, que se não deixou de ter seus pecadilhos de permissividade com governos autoritários, manteve-se quase sempre no campo democrático-conservador. O fato é que se me perguntarem, como me têm perguntado, o porquê da permanência de Casa-Grande & Senzala, ou mesmo de Sobrados e Mucambos, direi, sem exclusão de outros motivos, que entre eles prima a forma como foram escritos. Palavras bem escolhidas. Frases concatenadas, graça no discorrer dos temas, de tal modo que a vasta erudição do autor e a imensidade das notas e citações são como papel de embrulho chinês ou como as caixinhas que os japoneses usam para dar um quê de mistério, encobrindo os delicados presentes que oferecem. Leem-se centenas de páginas de análises complexas de Casa-Grande & Senzala ou de Sobrados e Mucambos no embalo de uma escrita de novela.

E olha que o estilo de Gilberto Freyre não é linear, nem na forma nem no andamento do raciocínio. Ele dá voltas, repete, leva o leitor a percorrer seus argumentos e suas descrições como que em espiral, como notou Elide Rugai Bastos em sua síntese de CG&S. De repente, acrescento, a espiral se desfaz circularmente, retorna ao passo inicial. Pior: nem sempre é conclusivo. Mesmo em Casa-Grande & Senzala o último capítulo, que trata do papel do negro na sociedade brasileira, termina prometendo um novo livro que nunca escreveu. Não cumpre o requisito de voltar às premissas que, uma vez demonstradas, requerem, no rigor do trato acadêmico, uma síntese conclusiva. O mesmo se dá em Sobrados e Mucambos, embora neste, pelo menos o anunciado próximo volume se concretizou com a publicação de Ordem e Progresso, embora 23 anos depois, em 1959.

Este estilo, nas palavras do próprio Gilberto, foi algo deliberado: terminada sua tese de mestrado na Universidade de Columbia em 1923, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century, que foi lida por Henry Mencken, o "mais antiacadêmico dos críticos" (CG&S, pág.48), este o aconselhou a desenvolver a tese sob a forma de livro. Daí por diante nunca mais Gilberto voltou a escrever à moda da academia. Ganhou leitores, alçou voo mundo afora, popularizou-se. Entretanto, em certo período, especialmente no final dos anos 50 e mais claramente nos anos 60, quase se tornou moda nos círculos acadêmicos e em setores políticos progressistas ou de esquerda, fazer-se um muxoxo nas referências a ele. Por quê? Seria só em razão de suas posições políticas conservadoras? Seria o modo não bem-comportado de redigir que se afasta do cânone acadêmico? Ou, quem sabe, o fato de haver idealizado o patriarcalismo brasileiro e adocicado o que teria sido o tratamento dado aos escravos pelos senhores, teses que tanto as pesquisas acadêmicas como os movimentos negros (retratados na obra de Florestan Fernandes e de Roger Bastide, por exemplo) começavam a rechaçar?


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