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quinta-feira, 3 de março de 2011

O vácuo de poder após a possível saída de Kadafi



Líbia carece de instituições que possam assumir o poder


Neil Macfarquhar


O coronel Muamar Kadafi fez uma advertência estrondosa, exortando seus minguantes seguidores à guerra civil. "No momento apropriado, abriremos os depósitos de armas para que todos os líbios e tribos sejam armados para que a Líbia fique vermelha em chamas!", vociferou num microfone portátil no entardecer de sexta-feira.
É esse, aliás, o medo dos que observam a carnificina na Líbia, pois Kadafi passou os últimos 40 anos esvaziando cada instituição que pudesse desafiar sua autoridade.
Diferentemente dos vizinhos Egito e Tunísia, a Líbia carece da mão estabilizadora de um corpo militar para escorar um governo em colapso. Ela não tem Parlamento, sindicatos, partidos políticos, sociedade civil, nem agências não governamentais. Seu único ministério forte é a companhia petrolífera estatal. O fato de alguns especialistas acharem que o próximo governo poderá ser construído em cima do Ministério do Petróleo salienta a pobreza de opções.
O pior cenário se a rebelião derrubar Kadafi, e um que preocupa autoridades antiterrorismo americanas, seria o de um Afeganistão ou Somália - um Estado falido onde a Al-Qaeda ou outros grupos radicais poderiam aproveitar o caos e operar impunemente.
Mas há outros que poderiam ocupar um vácuo, incluindo tribos poderosas ou uma coalizão pluralista de forças de oposição que se apossaram do leste do país e estão apertando o cerco perto da capital.
Os otimistas esperam que a deliberação da oposição persista; os pessimistas temem que a unidade só dure até Kadafi partir, e uma caça às bruxas sangrenta virá em seguida.
"Vai haver um vácuo político", disse Lisa Anderson, presidente da American University no Cairo e especialista em Líbia, sugerindo que são altas as possibilidades de um período violento de acerto de contas. "Não acho provável que as pessoas vão querer abaixar suas armas e voltar a ser burocratas."
Há uma pequena lista de instituições líbias, mas cada uma delas é limitada. Nenhuma tribo tem alcance nacional, e Kadafi deliberadamente jogou umas contra as outras, desenterrando rivalidades seculares mesmo em seus últimos discursos.
Há alguns membros respeitados, mas anciãos, do Conselho de Comando Revolucionário original de 12 membros que se uniram a Kadafi no destronamento do rei, em 1969. Alguns intelectuais no país e exilados esperam que a Líbia possa ressuscitar a sociedade pluralista vislumbrada pela Constituição de 1951, embora sem um monarca.
E há o imponderável, como o feito do coronel Kadafi que, aos 27 anos e como oficial inferior, arquitetou um golpe sem derramamento de sangue contra uma monarquia enfraquecida.
O maior medo - e um sobre o qual os especialista divergem - é que a Al-Qaeda ou grupos islâmicos da própria Líbia, que suportaram uma feroz repressão e podem ter as melhores habilidades de organização entre a oposição, possam chegar ao poder.
"Estivemos preocupados desde o início da agitação que a Al-Qaeda e suas filiais procurem oportunidades para se aproveitar de qualquer desordem", disse uma autoridade de contraterrorismo dos Estados Unidos. Dessas filiais, ele mencionou o Grupo de Combate Islâmico Líbio, formado pelos veteranos que combateram os soviéticos no Afeganistão, e a Al-Qaeda no Magreb Islâmico, a filial norte-africana da rede, que se apressou em endossar o levante líbio na semana passada.
Esses grupos "poderiam ser mais bem-sucedidos" na Líbia do que os militantes foram até agora no Egito, segundo a mesma fonte. "Nossos especialistas em contraterrorismo estão procurando sinais de que esses grupos possam ganhar um novo ponto de apoio ali."
Frederic Wehrey, um analista sênior de política na RAND Corporation que voltou recentemente de uma viagem à Líbia, disse que a Al-Qaeda poderia tentar explorar a agitação tribal e conquistar pontos de apoio nos vastos espaços desgovernados do sudoeste da Líbia, perto da fronteira argelina. No entanto, acrescentou que o islamismo sufista, uma forma mística da religião popular entre os líbios, tem sido resistente às formas mais extremas de salafismo defendidas pela Al-Qaeda.
"A Al-Qaeda é muito hábil na exploração de ressentimentos tribais, de modo que há uma preocupação com o sul", disse Wehrey. "Mas em termos de se os líbios estão prontos para receber o discurso da Al-Qaeda, não acho que isso seja tão ameaçador quanto alguns poderiam suspeitar." Há muito que Kadafi viu a Al-Qaeda como uma grave ameaça a seu regime, e ele foi o primeiro a pedir uma ordem de prisão para Osama bin Laden via Interpol, disse Bruce Hoffman, diretor do centro para estudos sobre paz e segurança da Universidade Georgetown. Mas a realidade é mais nuançada.
Para responder às ameaças de que após Kadafi virá um dilúvio islâmico ou tribal, Mustafa Mohamed Abud al-Jeleil, o ministro da Justiça que fugiu para o leste, realizou um fórum na semana passada na cidade oriental de Baida. O fórum reuniu líderes tribais, ex-comandantes militares e outros que se comprometeram em cooperar no futuro "Nós queremos um país - não há nenhum emirado islâmico ou a Al-Qaeda em parte alguma", disse Abud al-Jeilel. "Nosso único objetivo é libertar a Líbia desse regime e permitir que as pessoas escolham o governo que quiserem."
Mas foi justamente nos arredores de Baida, uma cidade a nordeste de Benghazi, que a insurgência islâmica alcançou seu auge nos anos 90. Kadafi bombardeou pesadamente a cidade de Darnah, também no nordeste, nos anos 90, para eliminar a insurgência, e prendeu os membros que não foram mortos.
Seu filho e aparente herdeiro, Saif al-Islam Kadafi, chefiou uma muito divulgada campanha para afastá-los da violência enquanto estavam presos, mas não há nenhuma garantia de que os ensinamentos prevalecerão quando estiverem livres. Entre esses grupos está uma Irmandade Muçulmana Líbia com laços com organizações similares no Egito e na Argélia, que é basicamente moderada com algumas facções radicais.
 TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK
É CORRESPONDENTE NO CAIRO 


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