A mesma presidente Dilma Rousseff que escolheu a data de 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, para sancionar a lei que acabaria com o sigilo eterno de documentos oficiais brasileiros - e por isso instou o Senado a aprovar com rapidez a matéria - simplesmente aceitou que se retirasse o caráter de urgência do projeto. Tem mais. A proposta da chamada Lei de Acesso à Informação foi apresentada em 2009 pelo então presidente Lula. A Câmara, em acordo com o governo, mudou-a para melhor. Para atender seus credores políticos, Dilma recuou e passou a defender a versão original. Os senadores petistas foram os últimos a saber.
No apagar das luzes do seu segundo mandato, o antecessor Fernando Henrique havia assinado um decreto bloqueando a revelação dos mais bem guardados segredos do Estado nacional. Os documentos chamados ultrassecretos - no topo de uma hierarquia que dividia os papéis oficiais em reservados, confidenciais e secretos - permaneceriam fora do alcance público por 30 anos, prorrogáveis por tantos períodos iguais quanto aprouvesse a seus guardiães de turno. Nos demais casos, o sigilo, respectivamente de 5, 10 e 20 anos, só poderia ser prorrogado uma vez.
No projeto de Lula, os textos considerados confidenciais deixariam de existir. Os reservados e os secretos não teriam o seu sigilo prorrogado. Mas os ultrassecretos poderiam continuar aferrolhados por sucessivos períodos de 25 anos. A Câmara decidiu tornar o prazo improrrogável. Dava-se como certo que o Senado ratificaria a proposta emendada. Restava saber apenas se aprovaria a matéria a tempo de Dilma entrelaçar a assinatura da lei com a celebração da liberdade de imprensa.
Não só isso não aconteceu, como ainda, no último domingo, passados 40 dias da data desejada, a nova ministra das Relações Institucionais, Ideli Salvatti, admitiu ao Estado que o governo retrocedeu. Sintomaticamente, rendendo-se ao titular do Senado, José Sarney, e ao reabilitado desafeto de Lula, o também ex-presidente da República Fernando Collor, que dirige a Comissão de Relações Exteriores da Casa, Dilma concordou com a interdição perpétua dos documentos ultrassecretos. Não se deu ao trabalho de combinar com a bancada do PT, favorável à liberação.
A rendição, criticada pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, se consumou com o fim da urgência legislativa. O projeto corre o risco de só voltar à pauta quando os seus adversários quiserem. Eles ecoam as objeções do Itamaraty e das Forças Armadas à liberação de documentos que, a esta altura, pertencem à história. Uns não querem que venham à luz o que Sarney chamou "articulações, como as que o Barão do Rio Branco teve que fazer muitas vezes", numa alusão às tratativas que expandiram a fronteira oeste do País. E outros não querem que se conheça nem sequer a documentação sobre possíveis atrocidades cometidas pelas tropas brasileiras na Guerra do Paraguai, há quase um século e meio.
A supressão da história oficial conflita com o direito de uma sociedade democrática de conhecer o seu passado, para, na consagrada expressão, aprender com os erros cometidos. É, sobretudo, um anacronismo, no mundo em que os povos cada vez mais cobram dos governantes a verdade sobre o hoje e o ontem. Uma nova mentalidade e novos meios de difusão exponencial de informações criaram uma cultura de demanda de acesso ao que o Poder político quer esconder. E, quanto mais não seja, no espírito do tempo, há sempre um WikiLeaks pronto para mostrar, sob aplausos, o que se acumula debaixo dos tapetes oficiais.
"Vamos abrir feridas", teme Sarney. Se assim for, pague-se o preço. Provavelmente, será menor do que se imagina. Os Estados Unidos acabam de publicar o texto integral - menos 11 palavras, decerto citações de nomes - dos 40 volumes de arquivos secretos da Guerra do Vietnã. São os famosos Documentos do Pentágono, vazados parcialmente em 1971 para o New York Times, que os publicou, foi processado pelo governo e obteve ganho de causa na Suprema Corte. Não consta que, 40 anos depois, Washington esteja vindo abaixo.
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