no Blog do Josias de Souza
Acusado de falta de memória, o brasileiro viaja na própria história como passageiro de um avião que, de tempos em tempos, abre o compartimento de bagagem e lança pedaços do passado no mar do esquecimento.
Agora mesmo, Dilma Rousseff pega em lanças por uma ‘Comissão da Verdade’ de mentirinha. Falta-lhe matéria-prima para varejar os porões da ditadura.
Antes de cometer o sincericídio que lhe custou o cargo de ministro da Defesa, Nelson Jobim cuidou de informar sobre o sumiço do papelório produzido pelos militares:
"Não há documentos, nós já levantamos os documentos todos, não tem. Os documentos já desapareceram, já foram consumidos à época."
Súbito, também o Judiciário decidiu livrar-se de parte do passado armazenado em seu bagageiro.
O repórter Elio Gaspari ilumina a encrenca no texto que abre sua coluna, disponível na Folha. Leia:
“O presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministro Cezar Peluso, baixou uma recomendação (nº 37) orientando os tribunais do país para preservar seus documentos.
Tem 1.800 palavras e quem a lê sente-se no paraíso. Menciona o ‘Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário’ e cria mecanismos para a digitalização de processos.
Tudo muito bonito até que se chega ao item 20 da recomendação: ‘Será preservada uma amostra estatística representativa do universo dos documentos e processos administrativos e dos autos judiciais findos destinados à eliminação.’
Numa palavra: destruição.
Reapareceu o apagão que há anos ameaça a memória do Judiciário. Do ponto de vista de quem quer se livrar de um papelório que pode chegar a 20 milhões de processos, esses documentos não têm valor. Juntam bichos, mofo e perigo de fogo. Para os historiadores, ali está a história do andar de baixo e, em muitos casos, só ali.
Pela recomendação de Peluso, serão destruídos processos encerrados há cinco ou dez anos. Só excepcionalmente, em casos que envolvem patrimônios, podem durar até cem anos. Deles, sobreviverá apenas uma ‘amostra estatística’.
Esse critério já queimou milhões de processos, entre eles o que tratou da indenização de um jovem metalúrgico que, em 1959, deixou o dedo mínimo da mão esquerda debaixo de uma prensa. Que valor teria o caso banal de um pernambucano miserável? Era o processo do dedo de Lula.
Pode-se sustentar que não compete ao Judiciário gastar dinheiro preservando processos velhos. Também é o caso de se conjurar projetos megalomaníacos de digitalização. Daí a destruir os papéis vai uma distância enorme.
No Paraná, a Justiça do Trabalho publicou um edital abrindo o caminho para para o descarte de cerca de 62 mil processos trabalhistas. Felizmente, a Unoeste de Marechal Cândido Rondon pediu a guarda do arquivo, e o caso poderá ser resolvido de forma exemplar.
O doutor Peluso sabe quão prósperos são os grandes escritórios de advocacia. O Rio Grande do Sul preserva 14 milhões de processos da sua Justiça, e isso custa à Viúva algo como R$ 4,2 milhões por ano (incluindo aluguel, água, luz e telefone).
Instituições oficiais de financiamento, ou programas do BNDES e da Petrobras, associados a algumas bancas de advogados, poderiam desatar esse nó em outros Estados.
Se a destruição for evitada e os arquivos forem salvos, algum dia uma grande cidade poderá montar um projeto semelhante ao dos papéis da corte criminal de Londres.
No ‘Old Bailey’ digitalizaram 197 mil julgamentos preservados, com 240 mil manuscritos onde estão 3,35 milhões de nomes da ralé que passou pela Justiça entre 1674 e 1913.
Essa papelada ensina que, em 1889, um sujeito era acusado de ganhar 20 libras para enviar uma jovem a um bordel brasileiro.
Graças à preservação de um censo dos hóspedes da prisão de Holloway, sabe-se que, em 1881, lá esteve Edward Glassborow, tataravô de Kate Midletton, duquesa de Cambridge.”
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