Everardo Maciel - O Estado de S.Paulo
Não constitui novidade o uso de tributos com finalidade extrafiscal, como subsídio à consecução das políticas públicas. Incentivos fiscais são um notório exemplo dessa prática, difundida em inúmeros países e regiões.
São, todavia, escassas as avaliações sobre a eficácia dos incentivos fiscais como instrumento para atrair investimentos ou estimular determinadas atividades. Os benefícios do Imposto de Renda (IR) destinados a empreendimentos localizados no Norte e no Nordeste, por exemplo, se tornaram mais conhecidos pelos escândalos do que por sua real repercussão no desenvolvimento daquelas regiões.
Essa crítica também se aplica aos incentivos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Nem por isso os governos estaduais têm sido parcimoniosos na outorga de favores fiscais. Não se pode esquecer de que tudo resulta de uma vigorosa combinação de exercício do poder discricionário, muito típico em nossa cultura patrimonialista, com uma competição predatória na atração de investimentos.
A Constituição de 1967, em seu art. 24, § 4.º, esclarecia que o ICM (hoje ICMS) teria alíquota uniforme, em todo o território nacional, para todas as mercadorias. Para evitar que, em virtude dessa uniformidade, a arrecadação nas operações interestaduais ficasse concentrada na origem, favorecendo desse modo os Estados mais ricos, admitiu-se, de forma criativa, a redução de base de cálculo naquelas operações, mitigando a concentração.
A possibilidade de que aquele instituto viesse a ser usado indiscriminadamente pelos Estados, provocando uma guerra fiscal, pretextou a edição, em janeiro de 1975, da Lei Complementar n.º 24, estabelecendo regras dracronianas para a concessão de benefícios fiscais, que passava a ser condicionada à decisão unânime dos Estados, observado que a inobservância dessa regra implicava nulidade do ato, ineficácia do crédito e presunção de irregularidade nas contas governamentais.
Até o final dos anos 80, essas regras, em boa medida, foram observadas. A maior autonomia concedida aos Estados na administração do ICMS, a partir da Constituição de 1988, estimulou uma generalizada desobediência àquela lei. De início limitada a empreendimentos industriais, a farra fiscal se estendeu a outros setores, como o comércio atacadista e, mais recentemente, as atividades de importação do exterior, em prejuízo da economia nacional, ademais dos benefícios "compensatórios" à concessão ilegal em outros Estados. Sobre esse descalabro, o Ministério Público mantém olímpica indiferença, a Justiça não fixou jurisprudência e os Estados que se consideram prejudicados empreendem tímidas iniciativas judiciais ou ações fiscais visando à glosa de créditos, de eficácia duvidosa e consequências muitas vezes desastradas para aqueles que, no exercício legítimo dos seus negócios, adquiriram mercadorias beneficiadas com incentivos ilícitos.
Estudo produzido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) mostrou que benefícios concedidos por Espírito Santo, Santa Catarina, Paraná, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Goiás alcançaram, em 2010, um volume de importações correspondente a US$ 14,2 bilhões. O Distrito Federal chegou a conceber um insólito benefício à atividade atacadista. Só no primeiro trimestre deste ano, São Paulo, Acre, Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul, Rondônia e Santa Catarina editaram dez decretos concedendo benefícios de ICMS. Definitivamente, do jeito que está não pode ficar.
Ante a ineficácia da lei, surgem algumas ideias para enfrentar a guerra fiscal. Afastada a utópica tese de federalização do ICMS, a adoção do princípio do destino, reduzindo a zero a alíquota incidente nas operações interestaduais, goza de prestígio entre renomados tributaristas. O argumento utilizado é que, nessa hipótese, não haveria como transferir o ônus do benefício de uma para outra Unidade da Federação. Os efeitos colaterais dessa solução são, contudo, seriíssimos: aumentaria a propensão à evasão fiscal, em virtude da grande diferença entre as alíquotas internas e interestaduais; o comércio atacadista interestadual passaria quase inevitavelmente a acumular créditos, de baixíssima liquidez, o que poderia levar o setor à ruína; e os Estados exportadores líquidos sofreriam significativas perdas de arrecadação, cuja compensação demandaria aumento da carga tributária e da dependência a recursos federais. Não parece ser uma boa solução.
Indiscutivelmente, a Lei Complementar n.º 24 se tornou inoperante. Creio que seria interessante abandonar o conceito de guerra fiscal e adotar o de competição fiscal lícita, consistindo em: estabelecer limites para a concessão de benefícios fiscais; de alguma forma, convalidar o que se fez no passado; eliminar a exigência de alíquota mínima nas operações internas; uniformizar em 7% as alíquotas interestaduais; e vedar a redução de base de cálculo (exceto no caso de micro e pequenas empresas). Trata-se de um caminho que implica concessões recíprocas e grande articulação política. Não consigo, entretanto, enxergar outro.
CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)
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