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É incoerente criticar um artista por usar urubus em sua obra e, ao mesmo tempo, comer animais que sofreram muito mais que os bichos em questão
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA na Folha de São Paulo
A obra "Bandeira Branca", na qual o artista Nuno Ramos usava urubus vivos, foi retirada da Bienal após protestos contra a utilização desses animais.
Essa polêmica pode ser positiva para iniciar um debate sério sobre um tema pouco discutido no Brasil: os aspectos éticos da relação entre seres humanos e animais.
O passo inicial foi dado pelo próprio artista, que, em vez de sair bradando contra suposta censura, revelou uma sobriedade raramente vista em situações semelhantes.
Embora as instituições legislativas, judiciais e policiais venham demonstrando dificuldade em lidar com as liberdades artística e de expressão (a proibição da Marcha da Maconha, o embate entre humorismo e política e o reiterado cerceamento à "bicicletada pelada" dão uma ideia disso), no caso de Nuno Ramos, o ponto central é distinto.
Não faz muito sentido encarar a polêmica como se fosse uma versão do surrado embate entre libertários e conservadores ou invocar as reações que algumas obras vanguardistas desencadearam no passado.
Ao contrário do que afirma Ramos, o que está em jogo não é "a possibilidade de pensar diferente" nem a de transgredir, mas, sim, a pergunta: por que meios? Não se trata do incômodo que a arte sempre gerou nos seus momentos mais criativos. O incômodo é outro: que "uso" podemos fazer dos animais?
Enquanto em parte do mundo ocidental acadêmicos (como Peter Singer), jornalistas (como Michael Pollan), escritores (como Safran Foer) e a grande mídia debatem com frequência a questão, no Brasil fingimos que o problema não nos diz respeito.
Nesse ponto, o texto de Nuno Ramos ("Bandeira branca, amor",Ilustríssima, 17/10) dá outro passo importante: se ele não pode usar urubus em suas obras, por que podemos comer animais? Alguns diriam: porque na natureza é assim, os mais fortes comem os mais fracos. Na natureza, contudo, nenhum animal é maltratado durante toda a sua vida até ser morto para ser comido.
Embora eu não aborde aqui outras questões éticas relevantes, como o próprio ato de comer animais ou o de usá-los em pesquisas, é possível discutir os limites éticos da produção e do consumo de carne como ocorrem hoje em boa parte do mundo, incluindo o Brasil. É no mínimo incoerente criticar um artista por usar animais em suas obras e, ao mesmo tempo, comer animais que sofreram muito mais do que os urubus em questão.
Ramos afirma que apenas o "vegetarianismo radical" seria coerente com a crítica ao uso dos urubus. Não precisamos ir tão longe, mas um mínimo de coerência é necessário. Alguns poderiam dizer que nossa subsistência nos autoriza a mais coisas do que a arte pela arte.
Mesmo esses, contudo, teriam que dar alguma atenção ao que comem no dia a dia.
Não é possível adotar uma postura moralmente superior diante de quem usa urubus em sua arte e, ao mesmo tempo, fingir que não sabe o que acontece com os animais que aparecem no seu prato todos os dias. Esses animais costumam sofrer muito mais do que os urubus de Nuno Ramos.
Mesmo instituições bem-intencionadas, como o Ibama, parecem não perceber a incoerência. Que sentido faz exigir luz ultravioleta para os urubus (como substituta da luz natural) se poucos dos frangos que frequentam os pratos dos brasileiros veem luz natural durante a sua breve vida?
O sofrimento dos animais criados para o abate tornou-se invisível, e nós, consumidores, preferimos não pensar nisso (afinal, isso implicaria o constrangimento de revisar ou justificar eticamente alguns de nossos hábitos alimentares mais arraigados).
Quem se indignou com o sofrimento de três urubus deveria visitar as instalações de alguns de nossos produtores de carne. E, do ponto de vista jurídico, talvez esteja na hora de o Ministério Público começar a se ocupar do assunto.
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, 37, é professor titular da Faculdade de Direito da USP.
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