domingo, 19 de dezembro de 2010

Guerra da Santa Dica



Dica foi perseguida pela Igreja e temida por coronéis

- O Estado de S.Paulo
Cerca de 500 famílias, segundo uma série de depoimentos, viviam ao redor da Casa da Cura, onde Dica vivia, na Lagoa, povoado às margens do Rio do Peixe, rebatizado por ela de Rio Jordão. Era o centro das festas do Divino e de São João, tradições do período colonial nos sertões goianos, promovidas por Dica, que inovava com ritos e símbolos de uma nova religião. Autoridades começaram a questionar os riscos sanitários de um lugar sem condições para atender a população que chegava para as festas.
Diante das reações contrárias de padres e coronéis da região, Dica colocou seu exército à disposição da oligarquia estadual de Totó Caiado, aliado do Palácio do Catete desde 1912, para engrossar, em 1924, a resistência à Coluna Prestes na cidade de Goiás, a 167 quilômetros de Pirenópolis. O Exército dos Anjos não chegou a enfrentar os tenentistas, mas voltou para o vilarejo da Lagoa mais influente.
Em reação, a Igreja Católica publicou em seus jornais que Dica era "prostituta", "histérica" e "tresloucada". As romarias de sertanejos para vê-la tinham reduzido o número de devotos da Festa do Divino Pai Eterno, promovida pelos padres em Trindade.
O jornal Santuário de Trindade defendeu a destruição do reduto de Dica. "Já se viu tamanha asneira! É o caso para a polícia intervir se não quiser uma repetição de Canudos." Outro periódico, O Democrata, bancado pelos coronéis, chamou Dica de "Lenine do sexo diferente" e "Antônio Conselheiro de saias", acusando-a de charlatanismo e prática ilegal da medicina. "Canudos é de ontem, e nós sabemos o que foi Canudos!", advertiu.
Os textos dos jornais foram recuperados pela historiadora da Universidade de Brasília Eleonora Zicari Costa de Brito, autora da tese "A construção de uma marginalidade através do discurso e da imagem: Santa Dica e a corte dos anjos". Eleonora recuperou um depoimento da líder sertaneja durante o processo do Dia do Fogo. A historiadora observa que, à época, era "reservado à mulher o silêncio em todos os campos discursivos". "(Ela) arrisca-se na tentativa de se fazer ouvir nesse campo onde os ouvidos e vozes são masculinos. Sobre seu discurso todos silenciam, até seu advogado." Na declaração, Dica nega, por exemplo, que tenha rebatizado o Rio do Peixe de Rio Jordão.
Um dos raros documentos sobre a chegada dos militares para atacar o povoado de Dica está no cartório de Pirenópolis. Carta do primeiro-tenente Benedicto Monteiro ao chefe de polícia do Estado, Celso Calmon, de 21 de outubro de 1925, anexada ao processo-crime de Dica, cita as mortes por "fogo", isto é, à bala, dos "fanáticos" José Gomes Cypriano (tio de Dica), Manuel dos Anjos, José Bellos, Manuel Rosa de Oliveira, Cordeiro de Faria e Jacintho Pires Novato. O documento cita também cinco mortos na "água" - seguidores de Dica que tentaram atravessar o Rio do Peixe: Ambrosina Rocha, uma mulher chamada Perolucia, um homem conhecido por Jacob, Manuel Sant"Ana e Adelino Borges.
Trabalho servil. À época, Goiás era um Estado pouco povoado e com uma das receitas mais baixas do País. A capital não chegava a ter 10 mil habitantes. O tempo do ouro era um capítulo do passado. Famílias que construíram casarões ainda nos anos da mineração mantinham sua influência com o apoio aos parlamentares aliados do governo federal e à custa de trabalho servil em suas propriedades decadentes. Doenças de chagas e beri-béri atingiam as cabanas de palhas e casas de pau-a-pique das beiras de rios e córregos. Os soldados do exército de Dica vieram da pobreza, da fome e do trabalho quase escravo das fazendas.
Não é possível afirmar que existe algum participante do Dia do Fogo ainda vivo. Na história oral do antigo povoado da Lagoa, porém, um morador recluso e de pouca conversa é apontado como ex-integrante do grupo armado de Dica. Trata-se de Manoel Sebastião de Souza, o Manoel Malaquias. Um documento de identidade recente indica que ele tem 80 anos. Os vizinhos afirmam que ele tem mais de 95 anos. "Do fogo eu não sei contar nada. Eu não me implico com essas coisas, não", diz. O medo da polícia ainda é vivo na comunidade. "Não vou dizer que o Manoel Malaquias participou ou não porque não quero incriminar ninguém", diz o vizinho Francisco Araújo, 84 anos.
A moradora Durvina de Oliveira, a dona Vita, 85 anos, diz que, com certeza, um irmão de Malaquias, Benedito, estava no Dia do Fogo. Benedito, morto nos anos 1990, era casado com uma irmã dela. Vita diz se lembrar do dia em que "Madrinha Dica", depois de sobreviver ao ataque policial, ser condenada e liberta, resolveu atender a outro pedido do governo estadual para reforçar uma tropa enviada a São Paulo para combater os revoltosos de 1932. "Eu era menina. Lembro que não ficou homem aqui."
A professora Waldetes Aparecida Rezende, moradora de Lagolândia, dá mais detalhes da história dos Malaquias. No livro Santa Dica: História e Encantamentos, publicado no ano passado, ela conta que, em 1950, Dica recebeu ameaças do comerciante José Mendonça Sobrinho, o Zezinho. Ao ser informada da chegada de um grupo de jagunços para matá-la, ela convocou Benedito e outros homens para esperar os inimigos na beira de uma estrada. Benedito atirou e matou Zezinho. Dica foi presa. A família de Zezinho mandou 20 jagunços matar Pedro, filho de Dica.
Ataque. "Não sei se era de Deus ou do demônio, eu sei que ela tinha o dom do profeta", afirma Bernarda Cypriano Gomes, 82 anos. A única irmã viva de Dica frequenta uma das muitas igrejas evangélicas que proliferaram em Pirenópolis nas últimas décadas, novas adversárias do culto à Santa do Rio do Peixe. Bernarda diz que o movimento religioso em Lagolândia começou com o nascimento da irmã, em 1906, na fazenda Mozondó. "Ela nasceu às 3 da tarde. Foi chorar só as 8 da noite. Nasceu de novo", conta. "Mais tarde, vi minha irmã morta muitas vezes. Ela podia ser jogada no fogo, mas não queimava", ressalta. "Pode ser divino, pode ser diabólico, pode ser da luz, pode ser das trevas, mas ela tinha mesmo poderes."
O processo-crime do Dia do Fogo inclui um depoimento atribuído a Dica em que ela diz ter sido "desonestada" - violentada sexualmente enquanto dormia - por um seguidor conhecido por Cocheado. Nos depoimentos obtidos pelo Estado em Pirenópolis, Cocheado aparece como "apaixonado pela madrinha". Foi ele quem teria salvo Dica, ajudando-a a atravessar o Rio do Peixe quando ela era atacada e caçada pelos policiais. "Quatorze balas bateram na barra do vestido de minha irmã, mas voltaram sem causar ferimentos", diz Benedita.
A moradora Floripa Araújo da Silva, 82 anos, construiu em homenagem a Dica uma capela no alto de um dos morros em volta de Lagolândia, onde em 1925 os policiais montaram trincheira. Ali existia décadas antes uma outra capela frequentada por seguidores de Dica. Floripa conta que um dia apareceu um círculo no cerrado feito pela "serpente enganadora do mundo". "Dica juntou 12 homens e foi lá", diz.
A repressão ao povoado naquele outubro de 1925 não acabaria com a crença no mito de Santa Dica. Por mais de 50 anos, ela recebeu em sua casa no centro de Lagolândia devotos vindos dos mais distantes sítios e povoados dos sertões de Goiás. Ali, fazia cirurgias espirituais, pedia aos anjos a cura de doentes e distribuía um óleo considerado milagroso pelos fiéis, feito com essências do Cerrado.
A fama chegou aos grandes centros. A mulher acusada de se opor à civilização, nas palavras dos adversários, teve os traços do rosto desenhados pela pintora modernista Tarsila do Amaral e os feitos descritos em poema por Jorge de Lima.
Dica desfez seu exército de homens armados, mas não abandonou a política. Ela elegeu o marido, o jornalista Mário Mendes, prefeito de Pirenópolis, nomeou aliados para cargos fictícios de subdelegado de Lagolândia e apoiou e se opôs a candidatos nas eleições municipais e estaduais.
Ela morreu em 1970, em consequência da doença de Chagas, num hospital de Goiânia. O corpo de Dica foi enterrado na sombra de uma gameleira plantada em frente à casa de Lagolândia, com a cabeça voltada para a igreja do povoado. A casa de taipa e chão batido ainda recebe devotos de Santa Dica, que tem à disposição dois grandes quartos com oito camas cada. Os pacientes não pagam pelas cirurgias espirituais. "Hoje, operam aqui os mesmos anjos da época da madrinha", afirma Divina Soares da Silva, 60 anos, responsável há 24 anos pela casa.
Divina é tratada por devotos que ainda buscam milagres em Lagolândia como sucessora de Santa Dica. Divina diz que o trabalho desenvolvido na casa não pode ser confundido com espiritismo kardecista ou candomblé. "As pessoas daqui são as mesmas da Igreja Católica. As duas coisas combinam muito bem", afirma. "Tudo o que aconteceu aqui eu sei, mas não gosto de falar", diz, num clima de mistério. Ela critica os evangélicos: "Estão se assenhoreando de um povoado que foi criado pela madrinha Dica com orientação dos anjos." 


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