MAC MARGOLIS - O Estado de S.Paulo
Chuvas torrenciais varreram a Venezuela no início do mês, deixando dezenas de mortos e 130 mil sem abrigo. Mas pode deixar com o comandante Hugo Chávez, que sabe como poucos converter calamidade nacional em oportunidade política.
Para melhor socorrer os flagelados, o presidente venezuelano pediu ao Congresso poderes excepcionais que o deixarão governar por decreto durante 18 meses, sem ter de se incomodar com a opinião alheia.
O plano vai muito além do socorro. Sob pretexto humanitário, tudo indica que Chávez se empenha em guarnecer seus já formidáveis poderes, ou "aprofundar a revolução do socialismo do século 21", como ele prefere. Mandachuva há 11 anos nesse país de 28 milhões de habitantes, nem disfarça mais seus desejos. "Tenho uma bateria de 20 leis já prontas", disse o líder venezuelano.
A pauta deve incluir o confisco de terras particulares, aumento de impostos e nacionalização de mais bancos particulares e estrangeiros.
O Congresso aprovou facilmente o pedido de Chávez na sexta-feira à noite. A atual Assembleia Nacional venezuelana é de maioria esmagadora chavista, que opera como um mero despachante da agenda bolivariana. E aí está a genialidade do estilo Chávez de ser e mandar.
Há apenas três meses, o governo venezuelano parecia estar na berlinda. Com a economia em farrapos (a Venezuela terá a única recessão no continente este ano), o crime e a violência em alta (16 mil homicídios em 2009, três vezes mais que no Iraque) e a outrora imbatível popularidade de Chávez despencando (já está abaixo dos 50%), os venezuelanos foram bufando às urnas.
A quebradiça oposição uniu-se e, canalizando a frustração e a fúria das ruas, desferiu um golpe histórico ao projeto Chávez na eleição de 25 de setembro, cravando mais que 50% do voto popular. Só que Chávez, jogador que é, já se prevenira. Como "hedge", meses antes do pleito, redesenhara o mapa distrital a dedo, dando mais peso a regiões menos populosas, onde o canto do socialismo versão 21 ainda empolga. Com essa contabilidade criativa, Chávez ganha mesmo perdendo. A maioria de votos rendeu à oposição apenas 40% das 165 cadeiras do Congresso. Melhor para a bancada socialista.
Comandar seis em cada dez votos parlamentares alegraria qualquer líder do mundo democrático, mas foi um baque para Chávez que se considera ungido do patriarca Simón Bolívar e se acostumou a tocar o Parlamento como uma fazenda particular.
Com a nova configuração, o Executivo perde sua soberania parlamentar, a supermaioria de dois terços da legislatura que lhe garante o direito de gastar ou retalhar o orçamento, ou até de triturar a Constituição, como le gusta. Será tudo mais difícil a partir de 5 de janeiro, quando o novo Parlamento, com a oposição vitaminada, tomará posse.
Tentativas. Se ainda paira alguma dúvida de como Chávez deve usar seus hiperpoderes, é só olhar para o passado recente.
Esta é quarta vez em que Chávez obtém autoridade excepcional.
Nas três primeiras, o governo cerceou a mídia independente, encampou bancos e empresas petrolíferas privadas e passou a confiscar propriedades rurais particulares.
Caracas agora ensaia pressionar ainda mais a imprensa rebelde, policiar o conteúdo na internet, forçar bancos a contribuir para um fundo social e restringir o financiamento estrangeiro das organizações não governamentais.
Em uma das medidas mais arrepiantes, o governo na semana passada anunciou uma nova "lei orgânica" que vira de ponta-cabeça a investigação científica no país. Sob a bandeira de corrigir "distorções" e estimular projetos "relevantes para a sociedade" - e não apenas "para quem usa jaleco branco" -, a Assembleia Nacional a pedido do governo mandou centralizar toda a verba de pesquisa. Com a nova ordem, para bancar qualquer pesquisa, seja com micróbios, alimentos ou mecânica quântica, o cientista precisa da bênção bolivariana. O biólogo Jaime Requena, da Academia de Ciências da Venezuela, não tem dúvidas. "Isso pode significar o fim da ciência no país", disse.
Para o país, que já perdeu quase um milhão de seus melhores quadros para o exterior (entre eles, 25 mil cientistas), o novo aperto do torniquete chavista dificilmente estanca essa sangria. Com manobras radicais de última hora, Chávez talvez consiga dar sobrevida ao combalido experimento bolivariano. Se o paciente sobreviverá à operação, já são outros quinhentos.
É CORRESPONDENTE DA "NEWSWEEK", COLUNISTA DO "ESTADO" E EDITA O SITE WWW.BRAZILINFOCUS.COM
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