segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Jânio – bastidores do golpe - Ary Ribeiro



Ary Ribeiro
À época repórter deste jornal e da Rádio Eldorado, incumbido da cobertura do Palácio do Planalto, pude acompanhar muito de perto os sete meses do governo Jânio Quadros e levar a rádio a ser a primeira emissora do País a noticiar a renúncia, que a ligação de alguns fatos leva a crer que fora planejada ainda na campanha eleitoral.
Começo por lembrar os acontecimentos. No dia 25 de agosto de 1961, chegara cedo ao Palácio do Planalto, como sempre, pois Jânio costumava iniciar o dia de trabalho por volta das 7h30 - e frequentemente já expedindo os seus famosos bilhetinhos com ordens ou indagações dirigidas a seus ministros.
O País vivia dias tensos. Na véspera, à noite, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, denunciara, pela televisão, haver sido sondado para apoiar suposta tentativa de golpe. Ele acabara de voltar de Brasília, onde sofrera o constrangimento do episódio da mala: convidado a hospedar-se no Palácio da Alvorada, quando voltou, à noite, depois de conversações com a cúpula janista, encontrou a sua mala do lado de fora do portão.
Jânio, àquela hora do dia 25, passava em revista tropas na Esplanada dos Ministérios, pois era o Dia do Soldado. Comecei a percorrer alguns gabinetes. O de José Aparecido de Oliveira, secretário particular do presidente, habitualmente aberto e ponto de encontro de jornalistas e políticos, estava estranhamente fechado.
Ao sair para almoçar, encontrei-me no elevador com o colega e amigo Edísio Gomes de Matos, do Jornal do Brasil. Falei-lhe do clima esquisito que percebera nos gabinetes: portas fechadas, fisionomias carregadas, ninguém falando nada. Mal entrara em meu apartamento, o telefone tocou. Era o Edísio: "Volta que o Jânio renunciou".
Estupefato, voltei. E ele me contou: ouvira, através da porta, José Aparecido falando da renúncia, pelo telefone. Avisei a Rádio Eldorado, que deixou pronta a notícia, porque a divulgação de "boatos" estava proibida. Quando, às 15 horas, o secretário de imprensa, Carlos Castello Branco, reuniu os jornalistas credenciados e começou a ler o comunicado, eu estava ao seu lado com o telefone ligado para a sucursal do Estadão em Brasília e esta com a rádio, que então soltou a notícia. Naquele tempo as comunicações não eram como hoje...
Muita gente acreditou, e por bastante tempo, que aquele fora ato tresloucado, de momento, talvez fruto de bebedeira da noite anterior. Hoje não há dúvida de que se tratou de tentativa de inusitado golpe de Estado - de iniciativa do próprio governante. O que não se sabe é que muito provavelmente havia sido arquitetado desde a campanha eleitoral.
Quando candidato, ele fizera uma espécie de teste: renunciara à candidatura, voltando atrás depois de difíceis entendimentos com a cúpula udenista - e com outro candidato a vice, o mineiro Milton Campos, no lugar do sergipano Leandro Maciel, ambos da UDN.
Um dos principais motivos da crise interna na campanha eleitoral, porém, não fora afastado. O comitê janista continuou estimulando a chapa clandestina Jan-Jan (Jânio e Jango). Naquele tempo se votava separadamente para presidente e vice. Eu mesmo, como um dos anônimos colaboradores da campanha janista, fui incumbido de redigir pequenos textos em prol da chapa Jan-Jan, os quais eram panfletados sem identificação de origem.
Jânio não precisava de Jango para se eleger. Henrique Teixeira Lott, candidato do PSD-PTB, era homem sem carisma, sem afinidade com a política, candidatura difícil de ser carregada e que não contava sequer com efetivo apoio do então presidente Juscelino Kubitschek. Tanto que Jânio, eleito com 5,6 milhões de votos, quase a metade do eleitorado, teve 2 milhões de votos a mais que o general Lott.
Por que, então, esforçar-se para eleger Jango?
Porque se o vice fosse Milton Campos o golpe da renúncia não teria efeito. Ele assumiria o cargo normalmente, sem traumas. Era homem de bem, respeitado até mesmo pelos adversários. Ao contrário de Jango, que, tido como aliado de sindicalistas e comunistas, tinha contra si feroz oposição de empresários e militares.
Jânio, pouco antes da renúncia, teve ainda a cautela de tirar Jango do País, enviando-o à China como chefe de uma missão empresarial, pois se estivesse no Brasil poderia assumir a Presidência, nomear imediatamente um ministro da Guerra e ganhar o controle da situação. Estando, porém, do outro lado do mundo - numa época em que as comunicações eram difíceis -, haveria tempo para apelos e mobilização pela volta de Jânio ao cargo, com poderes ampliados.
Jânio foi além: procurou intrigar mais Jango com seus opositores. José Aparecido mostrava-nos, a mim e ao Edísio, relatórios confidenciais que Jango enviava da China, repletos de elogios a Mao Tsé-tung e a outros líderes comunistas.
Esses fatos estariam a demonstrar que Jânio arquitetou o seu plano meticulosamente (ou paranoicamente). Deixou Brasília numa sexta-feira, pela manhã, mas a comunicação à imprensa e ao Parlamento só foi feita lá pelo meio da tarde, quando o Congresso Nacional deveria estar quase vazio. Dessa forma a renúncia só iria ser discutida na segunda-feira - Jânio imaginava que teria de ser levada à deliberação em plenário -, havendo tempo, assim, para articulações e mobilização por sua volta ao poder.
O presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, no entanto, frustrou o plano. Convocou imediatamente sessão conjunta do Congresso, anunciou a renúncia como "ato unilateral de vontade", insuscetível de ser discutido ou posto em deliberação, e deu posse ao sucessor constitucional presente no País, o presidente da Câmara, deputado Ranieri Mazzilli. Com isso se consumou a renúncia, que resultaria, mais tarde, na derrubada de João Goulart e em 20 anos de regime militar. 
JORNALISTA

no Estadão.com.br

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