terça-feira, 27 de julho de 2010

Abuso de poder, uma verdadeira praga nacional

Valor Econômico

Editorial


Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, jornalista e cronista do absurdo - autor do "Festival de Besteiras que Assola o País" (Febeapá) -, em uma de suas crônicas, imagina um militar tentando dar uma "carteirada" no médico. "Quando aquele cavalheiro nervoso entrou no hospital dizendo "eu sou coronel, eu sou coronel", o médico tirou o estetoscópio do ouvido e quis saber: "Fora esse, qual o outro mal do qual o senhor se queixa?"

O memorável escritor falecido teria resvalado pelo humor negro, se visse o Brasil de hoje. Estão em falta doutores como o imaginado pelo "Lalau", daqueles que se contrapõem ao poder da "carteirada". Ela corre solta, e parece que se prolifera na política.

"Carteirada" é como se diz, na gíria, quando uma autoridade ou celebridade diz o "você sabe com quem está falando?" para livrar-se de culpas ou responsabilidades, ou para obter privilégios.

A "carteirada" do governador André Puccinelli (PMDB), candidato à reeleição ao governo do Mato Grosso do Sul, mereceria a atenção da pena de Sérgio Porto, se ela ainda existisse. Não terminaria, todavia, com a frase dita pelo médico. Na quarta-feira, Puccinelli saiu para uma caminhada pela periferia de Campo Grande, num lugar chamado Aero Rancho, para pedir votos. É candidato à reeleição. Lá pelas tantas, virou para um eleitor, Rodrigo de Campo Roque, de 23 anos - que, certamente, se algum dia votou nele, não votará jamais - , e perguntou: "Você lê jornais? Viu o quanto fiz por Campo Grande?". O rapaz respondeu: "Vi também que o senhor é um ladrão".

Segundo relato de Rodrigo, Puccinelli, famoso por ataques de fúria, apertou forte seu ombro direito. "Senti uma dor forte, tentei afastar-me e o governador Puccinelli me deu um tapa na cara". Rodrigo confessa que empurrou o governador. "Eu reagi instintivamente para me desvencilhar da agressão que estava sofrendo". Daí veio a "carteirada": Rodrigo foi levado para a delegacia, chegou lá às 20 horas de quarta e na madrugada de quinta saiu, depois de fazer "um acordo" para ser solto: saiu como o agressor. O delegado lavrou o boletim de ocorrência como "injúria real contra o governador". E deu um conselho ao rapaz: se quisesse dar queixa contra Puccinelli, que fosse para Goiás. Em Mato Grosso do Sul não conseguiria. E completou, dizendo que não queria "confusão para a delegacia dele", conforme relato do agredido que virou agressor.

Puccinelli está conseguindo projeção nacional graças à sua intemperança. No ano passado, numa reunião com empresários do Estado, disse que o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, era "veado" e "fumador de maconha", e que ele, o governador, o estupraria "em praça pública" caso fosse ao Mato Grosso do Sul.

Não chega a ser o único, todavia, que se considera acima de qualquer poder porque obteve uma parcela de seu próprio poder pelo voto. O jornal "O Estado de S. Paulo", no domingo, publica uma extensa reportagem contando como o ex-ministro Edison Lobão (DEM-MA) conseguiu usar sua "carteira" de ministro para articular uma operação de liberação da exploração de ouro no garimpo de Serra Pelada (PA), e que envolve conhecidos e ex-assessores.

O abuso do poder, em questões que envolvem a política, não é apenas o que se convencionou, na Justiça Eleitoral, como tal - compra de voto e uso da máquina pública em benefício do candidato. Na política em geral, perto ou longe das eleições, prevalece a ideia de que a eleição é uma permissão que o eleitor dá ao político para se apropriar da máquina pública em seu próprio proveito, de seus amigos e familiares. É o que os clássicos das ciências sociais chamam de "patrimonialismo" - a incorporação de um poder que é público como poder privado. Nessas situações, a impessoalidade da lei inexiste, já que a autoridade se apropria do poder público para fins particulares. Isso não apenas gera corrupção, mas cria injustiça. Os homens não são iguais: há os que têm e os que não têm poder.

Dessa apropriação patrimonialista do poder, a lei é relativizada. Como as instituições são apropriadas pelo poderoso de plantão, as leis, mesmo que nas letras se dirijam a todos os cidadãos indistintamente, são usadas para a proteção de poucos. Puccinelli, como governador, não se acha obrigado sequer a ter compostura. Não precisa. Ele usa da rede de proteção da "carteirada".

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