Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
Entende-se que o governo queira por meio de maioria controlar o Congresso. Foge ao preceito republicano da independência entre os Poderes, mas é do jogo do poder.
O que não se pode compreender e muito menos aceitar é que isso seja feito por meio de inconstitucionalidades embutidas em um projeto de lei. Inaceitável, tampouco, é que o Congresso seja tão submisso ao Executivo que se deixe usurpar em suas prerrogativas e ainda defenda ardentemente o direito do Palácio do Planalto de fazê-lo ao arrepio da Constituição.
Aconteceu anteontem na aprovação do novo salário mínimo na Câmara: a despeito da tentativa do deputado Roberto Freire (PPS) de impedir a iniquidade, foi aprovado um dispositivo do projeto de lei que retira do Congresso a discussão do valor do mínimo até o fim do mandato de Dilma Rousseff.
O truque é o seguinte: fica estabelecido que conforme a política para o salário mínimo até 2014, os parâmetros para se chegar à proposta do governo são aqueles acertados com as centrais sindicais em 2007 - PIB dos dois anos anteriores mais a inflação do período -, sendo o valor fixado por decreto ano a ano.
Bastante simples de compreender qual a consequência, pois não? Pois suas excelências integrantes da maioria governista (e também da oposição que não ajudou Freire no embate) preferiram fazer de conta que não entenderam.
Pelos próximos três anos, se o Senado aprovar o projeto tal como está, o governo fica livre dessa discussão no Congresso. Uma graça o principal argumento do líder do PT na Câmara, Paulo Teixeira: a medida elimina a "burocracia".
Eis, então, que temos o seguinte: os próprios parlamentares se consideram meros carimbadores das decisões do Planalto e veem o debate no Parlamento como um trâmite burocrático.
Por esse raciocínio, eliminar-se-iam quaisquer tramitações congressuais, deixando a decisão de legislar para o Executivo. Como ocorre nas ditaduras.
Caso o Senado aprove, Roberto Freire recorrerá ao Supremo Tribunal Federal com uma ação direta de inconstitucionalidade, baseada no dispositivo da Constituição segundo o qual o valor do salário mínimo deve ser fixado por lei. Não por decreto baseado numa lei estabelecendo os critérios para o cálculo.
Argumenta Freire: se for por decreto presidencial, só o poder público será obrigado a cumprir. A sociedade e a iniciativa privada poderão ignorar, pois seu parâmetro é a Constituição e não o Diário Oficial.
Levantou-se naquela noite de discussões e monumentais incoerências de posições passadas e presentes a seguinte questão: se o cálculo está fixado em lei e o governo tem maioria no Congresso, o debate é sempre inútil. Então, melhor que se eliminem os intermediários.
Nada mais confortável para o governo e nada mais deformado no que tange ao sistema democrático de representação. O Executivo fica desobrigado de negociar, as forças políticas representadas no Parlamento impedidas de se manifestar e o poder de um dos Poderes fica submetido a acordos feitos com as centrais sindicais.
É o império do gabinete. O que o governo disser será a lei que se substitui à Constituição, ao Parlamento e à sociedade.
O poder continua emanando do povo, mas desse jeito em seu nome não é exercido.
Dominado. A escolha de um réu (João Paulo Cunha) do processo do mensalão para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara seria uma contradição em termos, caso a mesma comissão já não tenha sido presidida pelo notório deputado Eduardo Cunha.
Caso também mensaleiros, protagonistas de escândalos e réus de outros processos não estivessem sendo abrigados pelo governo federal e protegidos pelo PT, com vistas a promover uma "absolvição de fato".
Devido lugar. Evidência na sessão da Câmara que discutia o salário mínimo: na hora do vamos ver, as celebridades não participam. Recolhem-se ao lugar de onde nunca deveriam ter saído: a galeria das nulidades na política.
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