POR ALESSANDRO CRISTO
Pobres com câncer em Juiz de Fora (MG) receberam uma boa notícia no fim do mês passado. A Defensoria Pública da União no estado conseguiu liminar que obriga os governos federal, estadual e municipal a dividirem a conta do fornecimento de remédios caros indicados para o tratamento. Os oito medicamentos de que trata a liminar não constam na lista dos pagos pelo Sistema Único de Saúde, mas segundo a Defensoria, são os mais pedidos em ações individuais. A liminar saiu no dia 25 de fevereiro. Mas os beneficiários ainda serão escolhidos. A Justiça Federal delegou à Defensoria a tarefa de dizer quem se enquadra ou não nas condições, e de comunicar diretamente ao Poder Executivo a quem deve fornecer o medicamento (clique aqui e aqui para ler).
A ação foi proposta no dia 4 de novembro do ano passado. Segundo a Defensoria, os próprios médicos credenciados no SUS, quando os tratamentos convencionais não funcionam, receitam medicamentos importados como Tacerva (câncer no pulmão), Velcade (câncer na medula), Mabthera (câncer no sangue), Temodal (câncer no cérebro), Avastin (câncer no reto), Nexavar (câncer no fígado), Sutent (câncer no estômago) e o Herceptin (câncer de mama). Porém, os hospitais especializados em oncologia do Estado se negam a fornecê-los porque os remédios não constam na lista dos custeados pelo Ministério da Saúde.
“Estas listas não são atualizadas há mais de 10 anos, e assim, não acompanham o avanço da medicina, existindo medicamentos capazes de aumentar significativamente a qualidade de vida e a sobrevida dos portadores de neoplasias”, argumenta o defensor público federal João Roberto de Toledo, autor da Ação Civil Pública. “Também não há atualização dos valores pagos aos hospitais para custear os tratamentos dos pacientes, o que inviabiliza o fornecimento dos medicamentos.” Segundo o defensor, a situação provoca uma chuva de ações individuais no Judiciário.
Para racionalizar o trabalho, o juiz Guilherme Fabian Julien de Rezende, da 2ª Vara Federal de Juiz de Fora, resolveu inovar. Concedeu liminar ordenando que a União, o estado mineiro e o município de Juiz de Fora dividam os custos com o fornecimento dos medicamentos a todos os doentes que procurem a Defensoria Pública de posse da respectiva receita médica. Geralmente, os beneficiários de medidas como essa são listados pelo juiz, ou têm de fazer um pedido formal à Justiça como forma de liquidação da ordem. No entanto, a liminar de caráter geral concedida em Juiz de Fora só estabelece como critério que o valor do medicamento ultrapasse o equivalente a 30% da renda do paciente. No mais, a própria Defensoria será responsável por dizer quem tem o direito ou não. “O controle para o acionamento dos entes públicos no sentido do fornecimento dos medicamentos ficará sob a responsabilidade exclusiva da Defensoria Pública da União da cidade de Juiz de Fora”, afirma Rezende na decisão.
O juiz descreveu, ainda, de que forma a administração pública deveria cumprir a ordem. Segundo ele, União, estado e município devem arcar, cada um, com um terço do tratamento. “Primeiro o Município, no prazo de 15 dias a contar do ofício a ser encaminhado pela Defensoria”. Em seguida, o governo estadual deve pagar sua parte. “A União ficará responsável pelo fornecimento do medicamento relativo à última terça parte, cuja operação será realizada mediante depósito da quantia correspondente em conta a ser aberta na Caixa Econômica Federal, em nome do município de Juiz de Fora, o qual ficará no encargo de realizar a compra efetiva”, afirmou. O prazo para a União é de 30 dias do ofício da Defensoria. Caso o tratamento seja interrompido, o paciente fica responsável por comunicar o fato à Defensoria. Em caso de morte, o órgão deve informar à União para que o valor depositado não seja usado pelo município. O descumprimento das recomendações acarretará multa pessoal de R$ 20 mil ao secretário municipal de Saúde e ao gerente da Gerência Regional de Saúde de Minas Gerais.
Tamanho detalhamento extrapola o que prevê a Constituição Federal, na opinião do professor de Direito Processual Civil Antônio Cláudio da Costa Machado, da Universidade de São Paulo. “Cada ente age conforme sua competência. É estranho o juiz fazer divisão de tarefas”, diz.
Para outro professor na área, Clito Fornaciari, a delegação da escolha dos beneficiários passada à Defensoria é que foi inusitada. “A individuação é um processo de liquidação, que é tarefa jurisdicional. Passá-la a uma das partes tira a possibilidade de defesa da outra”, explica. Segundo ele, tem se tornado comum autores de ações civis públicas — na maioria das vezes, o Ministério Público — chamarem para si atribuições que são do juiz. “O órgão tem mais informações do que o julgador, devido ao seu melhor aparelhamento. Se o juiz desconhece a matéria, pode acabar comprando a tese.”
Na opinião do advogado Gustavo Marcondes, do Brasil Salomão e Matthes Advocacia, o que o juiz fez não foi dar à Defensoria a discricionariedade de escolher os beneficiários, mas a incumbência de checar se eles se enquadram nas condições já determinadas pelo juiz. "Não é um poder, mas um ônus", diz. O problema, segundo ele, pode ser a amplitude geográfica da decisão. "A jurisprudência do STJ tem reconhecido que a abrangência de liminares em ações coletivas é a do tribunal, e não a da vara onde foi concedida."
Apesar de ser discutível, a saída encontrada pelo juiz Guilherme Rezende encontra fundamento na urgência da medida e no fato de se tratar de direito fundamental “de segunda geração”, de acordo com Antônio Cláudio Machado. “O correto seria que houvesse regulamentação legal, mas na falta, cada juiz cria a regulamentação na própria decisão para tornar a medida viável.” O professor atribui a prática ao ativismo judicial, que “acaba se justificando devido à grande necessidade e carência” dos envolvidos. Para ele, se a garantia de direitos fundamentais ultrapassa questões legais, como a de definir quem tem direito ou não aos medicamentos, “passa por cima das processuais também”.
Processo 14032-39.2010.4.01.3801
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