quarta-feira, 2 de junho de 2010

A caminho de um Estado policialesco - ROBERTO DELMANTO JUNIOR

ROBERTO DELMANTO JUNIOR - O Estado de S.Paulo

O Brasil parece andar para trás. Enquanto, no mundo inteiro, a tecnologia vem trazendo avanços inimagináveis às investigações policiais, tornando-as mais eficientes, os nossos legisladores, com a sanção do presidente Lula, deram um prêmio à morosidade policial brasileira, fomentando a instituição de um Estado policialesco, em desfavor da cidadania, com a edição da Lei n.º 12.234, do dia 5 de maio, que alterou a prescrição durante as investigações policiais.

A prescrição impõe ao Estado um prazo máximo para perseguir pessoas acusadas de um crime, havendo, em nossa Constituição, somente duas exceções: o crime de racismo e a ação de grupos armados contra o Estado democrático. O Estatuto de Roma também tornou imprescritível o crime de tortura praticado durante ataque generalizado ou sistemático contra qualquer população civil.

Embora existam críticos afirmando que a prescrição seria um prêmio para o criminoso pela ineficiência estatal, uma recompensa para o que fugiu, castigando duramente o que não soube ou não quis fugir, ela é fundamental em toda democracia.

Isso porque os prazos prescricionais impõem que o Estado efetivamente se movimente para investigar crimes, sob pena de perder o poder de fazê-lo, diminuindo assim as chances de erro judiciário, já que, com o tempo, as provas vão se tornando mais frágeis. A prescrição evita, também, que cidadãos sejam eternamente perseguidos, mesmo porque, como dizia Rui Barbosa, "justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta", perdendo o sentido. Tudo em respeito à vítima e a seus familiares, à sociedade e até mesmo ao próprio cidadão investigado, presumido inocente, que têm, todos, o direito a um julgamento em prazo razoável.

Sem o devido debate, essa lei acabou com o curso do prazo prescricional para as investigações policiais com base na pena que, concretamente, venha a ser aplicada em futura condenação. É a chamada prescrição retroativa (artigo 110 do Código Penal).

A partir de agora, cidadãos podem ser investigados pela polícia, sem prescrição, por mais de uma década depois da data do suposto crime, violando-se a garantia constitucional de julgamento em prazo razoável.

Assim, se a pena máxima do crime for superior a quatro anos (como no caso de estelionato, cuja pena é de um a cinco anos), o inquérito policial poderá arrastar-se por até 12 anos; se a pena máxima for de oito anos (de que é exemplo um simples crime de furto com emprego de chave falsa, rompimento de obstáculo, abuso de confiança ou mediante concurso de duas pessoas, cuja pena é de dois a oito anos), poderão ser 16 anos de inquérito!

Tratando-se dos crimes mais graves, com pena máxima acima de 12 anos, as investigações policiais poderão durar 20 anos, o que é um despropósito, já que, nesses casos, estamos diante de delitos que, justamente pela sua gravidade, merecem empenho ainda maior da polícia, o que não é compatível com duas décadas de investigação.

Tudo sem prescrição, ainda que a pessoa acabe sendo condenada por uma pena inferior à máxima, com prazo prescricional muito menor.

A verdade nua e crua é que com a Lei n.º 12.234 se deu à Polícia Federal e às polícias estaduais poder para perseguir cidadãos por muito mais tempo do que podem durar as próprias ações penais. Isso porque, para os juízes, continua a existir a prescrição retroativa com base na pena aplicada, demandando deles um mínimo de agilidade nos processos, em prol da cidadania.

Essa alteração legislativa atinge também as investigações que o Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos Estaduais têm feito mediante os chamados Procedimentos Criminais Diversos, cuja constitucionalidade está pendente de julgamento na Suprema Corte.

Nesses moldes, a polícia e o Ministério Público não têm mais preocupação com a prescrição. Todos poderão demorar décadas para apurar a autoria e a materialidade de uma infração penal, seja mediante o tradicional inquérito policial, seja por meio dos aludidos procedimentos investigatórios.

Ora, se os inquéritos policiais já se arrastavam pelos escaninhos das delegacias de polícia e dos Fóruns por anos, com a ameaça da prescrição - que impunha, bem ou mal, ao menos uma preocupação dos promotores de Justiça e dos procuradores da República em cobrar da polícia o término das investigações -, agora, com a nova regra, é que os inquéritos não vão andar mesmo. Igualmente, os procedimentos criminais diversos do próprio Ministério Público poderão arrastar-se por décadas.

Lamentamos que, sob o discurso de evitar a impunidade, em vez de se aparelhar a polícia e dela exigir eficiência, se tenha concedido verdadeiro estímulo à letargia policial, somado ao excesso de poder no tempo. O mesmo se aplica ao Ministério Público, que, a partir de agora, poderá demorar 12, 16 ou até 20 anos para oferecer uma denúncia!

É a inversão de tudo, e com ofensa ao direito dos cidadãos, presumidos inocentes, de serem julgados em prazo razoável, como manda a Constituição.

Afinal, não tem cabimento o delegado de polícia e o Ministério Público poderem demorar muito mais tempo para terminar uma investigação e oferecer denúncia do que o juiz para julgar um processo. Processo criminal, este, muito mais complexo do que uma investigação, por exigir ampla defesa e contraditório.

É fundamental estarmos atentos, e de olhos bem abertos, para que modelo de controle social desejamos para o Brasil de amanhã, sobretudo por estar em trâmite legislativo um novo Código de Processo Penal.

O atual governo, pela força dada à Polícia Federal, de que também é exemplo essa grande ampliação dos prazos para os inquéritos policiais, tem corrido o risco, a cada dia que passa maior, da instituição, em nosso país, de um Estado policialesco.

ADVOGADO, PROFESSOR DA FGV, COAUTOR DO "CÓDIGO PENAL COMENTADO" (2010), É CONSELHEIRO DA OAB-SP. E-MAIL: ROBERTOJR@DELMANTO.COM

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