Civis participam de treinamento com armas em Benghazi, Líbia, cidade controlada pelos opositores do regime de Muammar Gaddafi |
Benghazi (Líbia)
Apesar da revolução contra o ditador líbio Muammar Gaddafi não contar com um líder, os rebeldes em Benghazi montaram um governo provisório em um tribunal. Aqui, um advogado obcecado por justiça, um vendedor de suco de laranja e um especialista em informática estão entre aqueles que se tornaram o coração, cabeça e voz de um país com intenção de mudar.
O velho general está chorando, com suas bochechas tremendo. Seus olhos estão vermelhos. Então ele enterra seu rosto em suas mãos. O general-de-brigada Abdulhadi Arafa é um dos homens mais poderosos em Benghazi, no leste da Líbia totalmente dominado pelos rebeldes. O oficial de 64 anos comanda 2 mil membros de uma unidade das forças especiais. E ele fez tudo certo uma semana e meia atrás, quando, após 41 anos de serviço, ele decidiu não obedecer ao líder líbio Muammar Gaddafi.
Quando a revolta teve início, ele ordenou aos seus comandados que permanecessem no quartel, fechou os portões e não agiu contra os manifestantes. Seus homens não disparariam contra ninguém exceto se fossem atacados.
O general tem quatro filhos e quatro filhas, que são todos aproximadamente da mesma idade que os manifestantes marchando do lado de fora. A lembrança de seus filhos facilitou para ele decidir que esses jovens representavam o povo líbio que ele jurou proteger. Ele está chorando, ele diz, porque Gaddafi é um criminoso que ordenou que seus homens atirassem contra seu próprio povo, até mesmo contra crianças.
Mas isso não é algo que o general Arafa desconhecia. Talvez ele também esteja chorando de arrependimento, por ter passado décadas servindo a um homem que comete assassinato e parece ter apenas uma tênue compreensão da realidade. Ele foi ao tribunal do outro lado da praia em Benghazi para receber novas ordens de seus novos mestres.
Um experimento único de democracia
A revolta líbia começou em Benghazi, a segunda maior cidade do país, em frente deste tribunal. Os rebeldes de todo o país estabeleceram seu quartel-general no prédio de aspecto austero de frente para o Mediterrâneo. O novo governo rebelde, estabelecido no sábado passado, consiste de um comitê e subcomitês para administração da cidade e da região ao redor. Ele é um governo provisório nascido da necessidade de ter alguém encarregado, alguém para dar ordens e instruções.
O comitê de 13 membros inclui advogados e professores. Representantes dos comitês das cidades no sul da Líbia estão em um corredor, à procura de pessoas que possam conhecer. Elas querem se juntar aos líderes rebeldes em Benghazi.
O ex-ministro da Justiça renegado de Gaddafi propôs a criação de um governo de transição real para todo o país, sediado aqui em Benghazi. Um conselho nacional de transição também deseja coordenar os rebeldes em outras cidades capturadas a partir deste quartel-geneal no tribunal.
O que está acontecendo aqui em Benghazi é uma experiência anarquista singular entre as rebeliões no mundo árabe. No Egito, em comparação, as forças armadas assumiram temporariamente o poder e, na Tunísia, as estruturas do antigo regime continuam funcionando.
Celebrando a liberdade
Multidões de centenas, às vezes de milhares, se reúnem em frente ao tribunal de Benghazi todo dia. Enquanto as ondas quebram na costa e a maresia enche o ar, as pessoas caminham ao longo da avenida costeira cantando, dançando e rezando, celebrando o que conseguiram e sua nova liberdade até tarde da noite.
Na quarta-feira, um rumor começou repentinamente a circular de que uma unidade leal a Gaddafi atacou Brega, um porto de petróleo líbio chave a 200 quilômetros a sudoeste de Benghazi, e que seis homens morreram. Quando ouviram a notícia, alguns dos homens jovens diante do tribunal começaram a gritar, subiram em suas picapes e partiram aceleradamente. Brega parecia oferecer uma oportunidade para testarem sua força.
Dentro do tribunal, Khalid al Saji se levantou para se fazer ouvir em meio à comoção. Saji, um advogado com traços marcantes e cabelo ralo, é um dos 14 homens que lançaram inadvertidamente a revolta. Quando a revolta começou, ele era o presidente da ordem dos advogados líbia. Agora ele é membro do subcomitê judicial.
Apesar deste local não ser mais usado como tribunal, ele está usando a toga que sempre veste na corte. Sobre seus ombros está a bandeira vermelha, preta e verde dos rebeldes. As cores da bandeira são as mesmas das da bandeira do Reino da Líbia, que existiu até 1969. Naquele ano, quando o rei viajou para o exterior para tratamento médico, um coronel chamado Muammar Gaddafi derrubou o governo em um golpe. Os motoristas agora usam as bandeiras verdes de Gaddafi para limpar a sujeira de seus pára-brisas.
A fagulha da revolução
Saji tem muita experiência com o comportamento arbitrário do ditador e com as leis que não se aplicam a todos. Ele próprio já foi preso e detido, frequentemente por dias ou semanas, por impetrar processos contra o governo. Apesar dessas ações serem teoricamente permitidas, Saji raramente vencia um caso.
Em 6 de fevereiro, Saji e três colegas foram para Trípoli, onde discutiram pessoalmente com Gaddafi em sua tenda. Os homens foram para discutir duas exigências, uma pequena e uma bem mais significativa. Apesar de seus mandatos terem expirado, os membros do conselho da ordem dos advogados que eram leais a Gaddafi se recusavam a deixar seus cargos. Eles podiam recusar porque Gaddafi e aqueles próximos a ele podiam ignorar as regras e quebrar a lei com impunidade. Saji agora estava exigindo que os membros do conselho que foram recém-eleitos entrassem na sala.
“Gaddafi conversou conosco porque o levante na Tunísia o deixou nervoso”, diz Saji. Ele acabou prometendo nomear os membros recém-eleitos ao conselho. Então Saji e seus colegas criaram coragem para tratar de sua maior preocupação: eles queriam uma Constituição que exigisse que Gaddafi também obedecesse à lei. Eles falaram e discutiram com Gaddafi, tentando convencê-lo da necessidade de instituir algumas reformas, caso quisesse manter a população calma.
“Mas enquanto deixávamos a tenda”, conta Saji, “ele disse que não faria nenhum anúncio até sentir que o momento era oportuno”.
Em 15 de fevereiro, as famílias das vítimas de um massacre de 1996 realizaram uma manifestação em Benghazi. Naquele ano, os capangas de Gaddafi massacraram 1.200 presos rebelados –os parentes dos manifestantes– com rifles de assalto. Dois dias depois, um pequeno grupo de advogados liderados por Saji realizou uma manifestação em prol de mais direitos humanos em frente ao tribunal. Com o passar das horas, mais e mais pessoas se juntaram a eles. O levante teve início. Logo os primeiros disparos foram dados. Então os rebeldes incendiaram o palácio de Gaddafi e o prédio da polícia secreta, vizinho ao tribunal, onde os oponentes do regime antes eram torturados. A revolta logo se espalhou para outras cidades.
As dores do crescimento de uma revolução
Jovens em uniformes rasgados agora estão se dirigindo ao tribunal de Benghazi, tocando suas buzinas, como se as armas antiaéreas na traseira de suas caminhonetes fossem balões de desfile. Eles parecem ignorar que centenas de pessoas já morreram nesta revolução.
As crianças escalam os tanques estacionados ao longo do bulevar à beira-mar, enquanto alto-falantes zumbem ao fundo. Há um caos no tribunal, onde pequenos grupos circulam, aproximam bancos e se envolvem em debates acalorados.
Jornais estão sendo impressos e slogans são desenvolvidos. Em uma sala, escoteiros estão picando frango e o colocando em grandes panelas de alumínio em fogareiros a gás. As centenas de pessoas debatendo aqui por dias precisam comer, mesmo que a refeição consista de nada mais do que frango com arroz preparado por um grupo de escoteiros.
É claro, o comitê não foi eleito pelo povo porque seria impossível organizar uma eleição. Em vez disso, as discussões no tribunal produzem uma lista de nomes que a maioria das pessoas apoiaria. Mas eles dizem que desejam uma democracia.
Um homem se encontra na escada da frente, gritando que não se sente representado por este comitê. Outros tentam acalmá-lo, explicando que o comitê primeiro precisa resolver assuntos simples, mas importantes, como assegurar o fornecimento de energia elétrica e que as centenas de jovens atualmente orientando o tráfego sejam substituídas por algo mais permanente. Os policiais de Gaddafi fugiram ou se refugiram em suas casas, aguardando para que a fúria das massas passe. Alguém futuramente terá que recolher todas as armas que foram roubadas na cidade, todas as armas de fogo e granadas de mão que os manifestantes saquearam dos quartéis abandonados.
Os oficiais militares também estabeleceram seu próprio comitê. Eles terão que planejar como defender a cidade em caso de as forças leais a Gaddafi decidirem contra-atacar, apesar de quase ninguém achar que precisa se preocupar seriamente com isso. Por ter chegado ao poder em um golpe, Gaddafi sabe muito bem que todo ditador precisa temer seu próprio exército. Por esse motivo, ele já enfraqueceu seus militares e fortaleceu suas milícias. Mas à medida que as unidades militares negligenciadas por ele agora se juntam aos manifestantes, seus policiais têm preferido voltar para casa.
O desejo de se virarem sozinhos
Em poucos dias, os rebeldes conseguiram tomar o controle de grande parte do país. Mas agora, para que as coisas possam voltar ao normal, eles primeiro precisam descobrir como governar. O comitê que serve como governo rebelde provisório não possui gabinetes e nem funcionários, dependendo de celulares e voluntários inexperientes.
Sob essas circunstâncias, os rebeldes precisam da ajuda de pessoas leais a Gaddafi que conheçam o básico sobre como manter uma cidade e um país funcionando, como o acesso aos fundos da cidade.
“Gaddafi nos insulta como radicais islâmicos e viciados em drogas, que não se misturam. Ele alega que queremos dividir o país, o que também não é verdade”, diz Mohammed Ghunim, um homem rechonchudo e ágil com marcas de riso ao redor dos olhos. Como ele fala bem e sabe inglês, Ghunim foi encarregado pela produção de folhetos, que apresentam slogans e explicam aos jornalistas as exigências feitas pelos rebeldes. Esta é uma revolta realizada por pessoas normais, ele diz, e ninguém as controla. Mas, ele acrescenta, ninguém pode privá-los disso.
Um grande cartaz no porto, não distante do tribunal, diz: “Nada de Intervenção –o Povo Líbio pode Cuidar disto Sozinho”. “Nós não queremos os Estados Unidos e nem a Otan aqui na Líbia”, explica Ghunim. “Se ajudarem –e, é claro, nós sabemos que eles podem derrotar Gaddafi– eles vão querer permanecer na Líbia para nos ajudar. Obrigado, mas não queremos isso. Nós não queremos virar outro Iraque e não queremos nos tornar dependentes de ninguém.”
Dito isso, acrescenta Ghunim, muitas pessoas aqui gostariam de ver bombas americanas jogadas em Trípoli e contra Gaddafi. Até a noite de quarta-feira, os rebeldes não tinham chegado a uma decisão sobre se gostariam ou não de uma intervenção, mas a maioria dos membros do comitê sentia que seria uma boa ideia, segundo Ghunim. Eles apreciariam ataques aéreos limitados, ele destaca, mas não operações por terra em solo líbio. E uma zona de exclusão aérea também seria de ajuda, ele diz, “porque atrapalharia Gaddafi”.
Ghunim acredita que uma zona de exclusão aérea seria difícil de manter, porque os bombardeiros do Ocidente primeiro teriam que neutralizar todas as posições antiaéreas do governo. Ainda assim, ele é rápido em apontar que ele não é um soldado, de modo que nem mesmo sabe se isso é possível. Ele é apenas um dono de uma pequena empresa de bebidas em Benghazi, que produz suco de laranja a partir de concentrado que ele importa da Áustria. “Nós queremos leis que se apliquem a todos”, ele diz. “Nós queremos viver e ser livres. E só.”
Saji, o advogado, diz que é cedo demais para elaborar uma Constituição, mas ele diz que tem pensado nisso há algum tempo. A Constituição do antigo reino não é ruim, ele acrescenta. É claro, as passagens que envolvem o rei teriam que ser removidas, mas ele diz que o restante poderia ser usado como estrutura básica. Saji aponta que toda a população teria que participar do debate sobre uma nova Constituição. Segundo o plano dos rebeldes em Benghazi, assim que Trípoli for capturada, um grande comitê será formado para estabelecer um governo de transição e organizar as primeiras eleições.
Heróis improváveis
No último andar do tribunal, o homem que pode ser a pessoa mais importante na revolução está acabando de se levantar de uma pilha de colchões velhos. Ele pisca seus olhos enquanto a luz do meio-dia passa pelos buracos nas cortinas. Ele está aqui há muitos dias e noites, dormindo muito pouco e bebendo muito café.
Mohammed Nabbous pergunta que dia é, e ele descobre que hoje é seu 28º aniversário. Não há slogans escritos nas paredes aqui, como nos corredores descendo a escada. Em vez disso, as paredes estão cobertas de palavras e números como “Canal”, “nome do usário” e “IP 62.32.46.100”. Nabbous berra ao microfone: “Meu upload é zero! Qual é o problema?” Há cabos do equipamento pendurados na sala e um alicate e uma pequena chave de fenda se encontram na mesa diante dele.
Gaddafi desativou a Internet na Líbia e apenas na segunda-feira algumas linhas voltaram a funcionar. Todavia, Nabbous conseguiu usar um satélite para enviar a mensagem dos rebeldes para o resto do mundo. “Gaddafi não pode desativar isto”, diz Nabbous. “Ele teria que jogar uma bomba para me deter.”
As imagens registradas pelas câmeras dentro do tribunal estão passando na tela atrás dele. O satélite as envia diretamente para a Internet via livestream.com. Nabbous está fornecendo as imagens para as emissoras de televisão de todo o mundo. E quando os manifestantes são atacados em Trípoli e ligam para Nabbous, ele segura seu celular próximo do microfone para que os sons dos disparos e gritos possam ser transmitidos ao vivo online.
Galeria de fotos de partes de corpos
Nabbous usa um laptop para armazenar as imagens horríveis registradas pelos rebeldes. Como pode parecer propaganda, pouco desse material pode ser publicado. Por exemplo, um vídeo trêmulo mostra um soldado executando um manifestante. O material também inclui uma galeria de fotos de pedaços de corpos individuais.
O Facebook –a segunda mais importante ferramenta da revolução depois do Twitter– está aberto em outro computador. Ao postarem constantemente novas mensagens, os fãs estão dando impulso à revolução. Foi exatamente o que fizeram na Tunísia e no Egito –e exatamente o motivo para Gaddafi querer desativar a Internet.
Mas Nabbous, que antes era dono de uma empresa de informática, quase sempre encontra uma saída. Quando os rebeldes tomaram conta do tribunal, ele levou todo o seu equipamento para o prédio sem hesitação. “Nós não existiríamos sem essas coisas aqui”, ele diz.
O velho general está chorando, com suas bochechas tremendo. Seus olhos estão vermelhos. Então ele enterra seu rosto em suas mãos. O general-de-brigada Abdulhadi Arafa é um dos homens mais poderosos em Benghazi, no leste da Líbia totalmente dominado pelos rebeldes. O oficial de 64 anos comanda 2 mil membros de uma unidade das forças especiais. E ele fez tudo certo uma semana e meia atrás, quando, após 41 anos de serviço, ele decidiu não obedecer ao líder líbio Muammar Gaddafi.
Quando a revolta teve início, ele ordenou aos seus comandados que permanecessem no quartel, fechou os portões e não agiu contra os manifestantes. Seus homens não disparariam contra ninguém exceto se fossem atacados.
O general tem quatro filhos e quatro filhas, que são todos aproximadamente da mesma idade que os manifestantes marchando do lado de fora. A lembrança de seus filhos facilitou para ele decidir que esses jovens representavam o povo líbio que ele jurou proteger. Ele está chorando, ele diz, porque Gaddafi é um criminoso que ordenou que seus homens atirassem contra seu próprio povo, até mesmo contra crianças.
Mas isso não é algo que o general Arafa desconhecia. Talvez ele também esteja chorando de arrependimento, por ter passado décadas servindo a um homem que comete assassinato e parece ter apenas uma tênue compreensão da realidade. Ele foi ao tribunal do outro lado da praia em Benghazi para receber novas ordens de seus novos mestres.
Um experimento único de democracia
A revolta líbia começou em Benghazi, a segunda maior cidade do país, em frente deste tribunal. Os rebeldes de todo o país estabeleceram seu quartel-general no prédio de aspecto austero de frente para o Mediterrâneo. O novo governo rebelde, estabelecido no sábado passado, consiste de um comitê e subcomitês para administração da cidade e da região ao redor. Ele é um governo provisório nascido da necessidade de ter alguém encarregado, alguém para dar ordens e instruções.
O comitê de 13 membros inclui advogados e professores. Representantes dos comitês das cidades no sul da Líbia estão em um corredor, à procura de pessoas que possam conhecer. Elas querem se juntar aos líderes rebeldes em Benghazi.
O ex-ministro da Justiça renegado de Gaddafi propôs a criação de um governo de transição real para todo o país, sediado aqui em Benghazi. Um conselho nacional de transição também deseja coordenar os rebeldes em outras cidades capturadas a partir deste quartel-geneal no tribunal.
O que está acontecendo aqui em Benghazi é uma experiência anarquista singular entre as rebeliões no mundo árabe. No Egito, em comparação, as forças armadas assumiram temporariamente o poder e, na Tunísia, as estruturas do antigo regime continuam funcionando.
Celebrando a liberdade
Multidões de centenas, às vezes de milhares, se reúnem em frente ao tribunal de Benghazi todo dia. Enquanto as ondas quebram na costa e a maresia enche o ar, as pessoas caminham ao longo da avenida costeira cantando, dançando e rezando, celebrando o que conseguiram e sua nova liberdade até tarde da noite.
Na quarta-feira, um rumor começou repentinamente a circular de que uma unidade leal a Gaddafi atacou Brega, um porto de petróleo líbio chave a 200 quilômetros a sudoeste de Benghazi, e que seis homens morreram. Quando ouviram a notícia, alguns dos homens jovens diante do tribunal começaram a gritar, subiram em suas picapes e partiram aceleradamente. Brega parecia oferecer uma oportunidade para testarem sua força.
Dentro do tribunal, Khalid al Saji se levantou para se fazer ouvir em meio à comoção. Saji, um advogado com traços marcantes e cabelo ralo, é um dos 14 homens que lançaram inadvertidamente a revolta. Quando a revolta começou, ele era o presidente da ordem dos advogados líbia. Agora ele é membro do subcomitê judicial.
Apesar deste local não ser mais usado como tribunal, ele está usando a toga que sempre veste na corte. Sobre seus ombros está a bandeira vermelha, preta e verde dos rebeldes. As cores da bandeira são as mesmas das da bandeira do Reino da Líbia, que existiu até 1969. Naquele ano, quando o rei viajou para o exterior para tratamento médico, um coronel chamado Muammar Gaddafi derrubou o governo em um golpe. Os motoristas agora usam as bandeiras verdes de Gaddafi para limpar a sujeira de seus pára-brisas.
A fagulha da revolução
Saji tem muita experiência com o comportamento arbitrário do ditador e com as leis que não se aplicam a todos. Ele próprio já foi preso e detido, frequentemente por dias ou semanas, por impetrar processos contra o governo. Apesar dessas ações serem teoricamente permitidas, Saji raramente vencia um caso.
Em 6 de fevereiro, Saji e três colegas foram para Trípoli, onde discutiram pessoalmente com Gaddafi em sua tenda. Os homens foram para discutir duas exigências, uma pequena e uma bem mais significativa. Apesar de seus mandatos terem expirado, os membros do conselho da ordem dos advogados que eram leais a Gaddafi se recusavam a deixar seus cargos. Eles podiam recusar porque Gaddafi e aqueles próximos a ele podiam ignorar as regras e quebrar a lei com impunidade. Saji agora estava exigindo que os membros do conselho que foram recém-eleitos entrassem na sala.
“Gaddafi conversou conosco porque o levante na Tunísia o deixou nervoso”, diz Saji. Ele acabou prometendo nomear os membros recém-eleitos ao conselho. Então Saji e seus colegas criaram coragem para tratar de sua maior preocupação: eles queriam uma Constituição que exigisse que Gaddafi também obedecesse à lei. Eles falaram e discutiram com Gaddafi, tentando convencê-lo da necessidade de instituir algumas reformas, caso quisesse manter a população calma.
“Mas enquanto deixávamos a tenda”, conta Saji, “ele disse que não faria nenhum anúncio até sentir que o momento era oportuno”.
Em 15 de fevereiro, as famílias das vítimas de um massacre de 1996 realizaram uma manifestação em Benghazi. Naquele ano, os capangas de Gaddafi massacraram 1.200 presos rebelados –os parentes dos manifestantes– com rifles de assalto. Dois dias depois, um pequeno grupo de advogados liderados por Saji realizou uma manifestação em prol de mais direitos humanos em frente ao tribunal. Com o passar das horas, mais e mais pessoas se juntaram a eles. O levante teve início. Logo os primeiros disparos foram dados. Então os rebeldes incendiaram o palácio de Gaddafi e o prédio da polícia secreta, vizinho ao tribunal, onde os oponentes do regime antes eram torturados. A revolta logo se espalhou para outras cidades.
As dores do crescimento de uma revolução
Jovens em uniformes rasgados agora estão se dirigindo ao tribunal de Benghazi, tocando suas buzinas, como se as armas antiaéreas na traseira de suas caminhonetes fossem balões de desfile. Eles parecem ignorar que centenas de pessoas já morreram nesta revolução.
As crianças escalam os tanques estacionados ao longo do bulevar à beira-mar, enquanto alto-falantes zumbem ao fundo. Há um caos no tribunal, onde pequenos grupos circulam, aproximam bancos e se envolvem em debates acalorados.
Jornais estão sendo impressos e slogans são desenvolvidos. Em uma sala, escoteiros estão picando frango e o colocando em grandes panelas de alumínio em fogareiros a gás. As centenas de pessoas debatendo aqui por dias precisam comer, mesmo que a refeição consista de nada mais do que frango com arroz preparado por um grupo de escoteiros.
É claro, o comitê não foi eleito pelo povo porque seria impossível organizar uma eleição. Em vez disso, as discussões no tribunal produzem uma lista de nomes que a maioria das pessoas apoiaria. Mas eles dizem que desejam uma democracia.
Um homem se encontra na escada da frente, gritando que não se sente representado por este comitê. Outros tentam acalmá-lo, explicando que o comitê primeiro precisa resolver assuntos simples, mas importantes, como assegurar o fornecimento de energia elétrica e que as centenas de jovens atualmente orientando o tráfego sejam substituídas por algo mais permanente. Os policiais de Gaddafi fugiram ou se refugiram em suas casas, aguardando para que a fúria das massas passe. Alguém futuramente terá que recolher todas as armas que foram roubadas na cidade, todas as armas de fogo e granadas de mão que os manifestantes saquearam dos quartéis abandonados.
Os oficiais militares também estabeleceram seu próprio comitê. Eles terão que planejar como defender a cidade em caso de as forças leais a Gaddafi decidirem contra-atacar, apesar de quase ninguém achar que precisa se preocupar seriamente com isso. Por ter chegado ao poder em um golpe, Gaddafi sabe muito bem que todo ditador precisa temer seu próprio exército. Por esse motivo, ele já enfraqueceu seus militares e fortaleceu suas milícias. Mas à medida que as unidades militares negligenciadas por ele agora se juntam aos manifestantes, seus policiais têm preferido voltar para casa.
O desejo de se virarem sozinhos
Em poucos dias, os rebeldes conseguiram tomar o controle de grande parte do país. Mas agora, para que as coisas possam voltar ao normal, eles primeiro precisam descobrir como governar. O comitê que serve como governo rebelde provisório não possui gabinetes e nem funcionários, dependendo de celulares e voluntários inexperientes.
Sob essas circunstâncias, os rebeldes precisam da ajuda de pessoas leais a Gaddafi que conheçam o básico sobre como manter uma cidade e um país funcionando, como o acesso aos fundos da cidade.
“Gaddafi nos insulta como radicais islâmicos e viciados em drogas, que não se misturam. Ele alega que queremos dividir o país, o que também não é verdade”, diz Mohammed Ghunim, um homem rechonchudo e ágil com marcas de riso ao redor dos olhos. Como ele fala bem e sabe inglês, Ghunim foi encarregado pela produção de folhetos, que apresentam slogans e explicam aos jornalistas as exigências feitas pelos rebeldes. Esta é uma revolta realizada por pessoas normais, ele diz, e ninguém as controla. Mas, ele acrescenta, ninguém pode privá-los disso.
Um grande cartaz no porto, não distante do tribunal, diz: “Nada de Intervenção –o Povo Líbio pode Cuidar disto Sozinho”. “Nós não queremos os Estados Unidos e nem a Otan aqui na Líbia”, explica Ghunim. “Se ajudarem –e, é claro, nós sabemos que eles podem derrotar Gaddafi– eles vão querer permanecer na Líbia para nos ajudar. Obrigado, mas não queremos isso. Nós não queremos virar outro Iraque e não queremos nos tornar dependentes de ninguém.”
Dito isso, acrescenta Ghunim, muitas pessoas aqui gostariam de ver bombas americanas jogadas em Trípoli e contra Gaddafi. Até a noite de quarta-feira, os rebeldes não tinham chegado a uma decisão sobre se gostariam ou não de uma intervenção, mas a maioria dos membros do comitê sentia que seria uma boa ideia, segundo Ghunim. Eles apreciariam ataques aéreos limitados, ele destaca, mas não operações por terra em solo líbio. E uma zona de exclusão aérea também seria de ajuda, ele diz, “porque atrapalharia Gaddafi”.
Ghunim acredita que uma zona de exclusão aérea seria difícil de manter, porque os bombardeiros do Ocidente primeiro teriam que neutralizar todas as posições antiaéreas do governo. Ainda assim, ele é rápido em apontar que ele não é um soldado, de modo que nem mesmo sabe se isso é possível. Ele é apenas um dono de uma pequena empresa de bebidas em Benghazi, que produz suco de laranja a partir de concentrado que ele importa da Áustria. “Nós queremos leis que se apliquem a todos”, ele diz. “Nós queremos viver e ser livres. E só.”
Saji, o advogado, diz que é cedo demais para elaborar uma Constituição, mas ele diz que tem pensado nisso há algum tempo. A Constituição do antigo reino não é ruim, ele acrescenta. É claro, as passagens que envolvem o rei teriam que ser removidas, mas ele diz que o restante poderia ser usado como estrutura básica. Saji aponta que toda a população teria que participar do debate sobre uma nova Constituição. Segundo o plano dos rebeldes em Benghazi, assim que Trípoli for capturada, um grande comitê será formado para estabelecer um governo de transição e organizar as primeiras eleições.
Heróis improváveis
No último andar do tribunal, o homem que pode ser a pessoa mais importante na revolução está acabando de se levantar de uma pilha de colchões velhos. Ele pisca seus olhos enquanto a luz do meio-dia passa pelos buracos nas cortinas. Ele está aqui há muitos dias e noites, dormindo muito pouco e bebendo muito café.
Mohammed Nabbous pergunta que dia é, e ele descobre que hoje é seu 28º aniversário. Não há slogans escritos nas paredes aqui, como nos corredores descendo a escada. Em vez disso, as paredes estão cobertas de palavras e números como “Canal”, “nome do usário” e “IP 62.32.46.100”. Nabbous berra ao microfone: “Meu upload é zero! Qual é o problema?” Há cabos do equipamento pendurados na sala e um alicate e uma pequena chave de fenda se encontram na mesa diante dele.
Gaddafi desativou a Internet na Líbia e apenas na segunda-feira algumas linhas voltaram a funcionar. Todavia, Nabbous conseguiu usar um satélite para enviar a mensagem dos rebeldes para o resto do mundo. “Gaddafi não pode desativar isto”, diz Nabbous. “Ele teria que jogar uma bomba para me deter.”
As imagens registradas pelas câmeras dentro do tribunal estão passando na tela atrás dele. O satélite as envia diretamente para a Internet via livestream.com. Nabbous está fornecendo as imagens para as emissoras de televisão de todo o mundo. E quando os manifestantes são atacados em Trípoli e ligam para Nabbous, ele segura seu celular próximo do microfone para que os sons dos disparos e gritos possam ser transmitidos ao vivo online.
Galeria de fotos de partes de corpos
Nabbous usa um laptop para armazenar as imagens horríveis registradas pelos rebeldes. Como pode parecer propaganda, pouco desse material pode ser publicado. Por exemplo, um vídeo trêmulo mostra um soldado executando um manifestante. O material também inclui uma galeria de fotos de pedaços de corpos individuais.
O Facebook –a segunda mais importante ferramenta da revolução depois do Twitter– está aberto em outro computador. Ao postarem constantemente novas mensagens, os fãs estão dando impulso à revolução. Foi exatamente o que fizeram na Tunísia e no Egito –e exatamente o motivo para Gaddafi querer desativar a Internet.
Mas Nabbous, que antes era dono de uma empresa de informática, quase sempre encontra uma saída. Quando os rebeldes tomaram conta do tribunal, ele levou todo o seu equipamento para o prédio sem hesitação. “Nós não existiríamos sem essas coisas aqui”, ele diz.
Tradução: George El Khouri Andolfato
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