sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A viuvez da presidente - O Estado de S.Paulo



O Estado de S.Paulo
O fator singular a ter em conta antes de qualquer outro nas especulações sobre os rumos da Argentina depois da morte súbita do ex-presidente Néstor Kirchner, que se fez suceder por sua mulher Cristina e se preparava para reaver o cargo em 2011, é a peculiar cultura política do país. Nela, a veneração pelos líderes falecidos, beirando a necrofilia, confere um sentido literal à clássica expressão de Auguste Comte de que "os mortos governam os vivos".
Ainda assim, depende de quem sejam os mortos e os vivos - e da aptidão destes para encarnar aqueles. Em 1974, quando morreu o presidente Juan Perón, a sua segunda mulher e vice, Maria Estela Martinez, a Isabelita, não conseguiu unir as facções do peronismo e acabou removida da Casa Rosada pelos militares. Duas décadas antes, quando Perón enviuvou de Evita - a santa viva do povo argentino -, o prestígio do caudilho varou o céu. Nem sequer o exílio de 17 anos depois do golpe de 1955 dissipou a sua liderança. E o culto a Evita ajudou a devolvê-lo ao poder.
Há poucas dúvidas de que a peronista Cristina Kirchner estará mais para Perón sem Evita do que para Isabelita sem Perón. Salvo na improvável hipótese de que, desprovida do seu principal interlocutor e articulador político, ela se revele um completo desastre, o retrospecto indica que o desaparecimento prematuro do marido, aos 60 anos, resgatará a sua popularidade. A aprovação ao governo foi atingida pela inflação em alta, os percalços de uma economia que só há pouco começou a se recuperar da crise internacional - e a exacerbação do truculento "estilo K" que ela compartilhava com o falecido e que funciona como uma máquina de fazer desafetos.
Se, como exageravam os críticos, Cristina governava à sombra do marido, talvez seja o caso de dizer que a memória dele, transfigurada - como é da índole argentina - pela morte, tenderá doravante a ser a sua grande aliada. A lembrança de Néstor Kirchner deverá mitigar as consequências dos futuros erros da sucessora, lustrar a sua imagem e conduzi-la como favorita às urnas presidenciais de 2011. Para os mais céticos sobre o discernimento político dos nossos vizinhos, que acreditam que a maioria dos argentinos vota movida pelas emoções e não pelo raciocínio, com a morte inesperada do marido Cristina Kirchner já está praticamente reeleita.
Será um notável feito póstumo do militante da Juventude Peronista e advogado de causas miúdas que, para se distanciar da feroz repressão do regime militar, se mudou de La Plata, onde se formou e conheceu Cristina, para Rio Gallegos, capital da remota Província de Santa Cruz. Na obscuridade, elegeu-se prefeito de Rio Gallegos e em seguida governador de Santa Fé, no centro-leste do país. Subiu na política, impulsionado pela mesma vaga de anomia política que engolfou uma Argentina falida na virada do século. Quando o povo tomou Buenos Aires aos gritos de que se vayan todos, abriu-se espaço para ele ficar.
E mesmo assim não foi fácil. Desajeitado e destituído de carisma, beneficiou-se da desmoralização da classe política. Em 2002, à falta de melhor, o então presidente provisório Eduardo Duhalde o escolheu para disputar a Casa Rosada contra Carlos Menem, desejoso de voltar ao poder. Elegeu-se porque este desistiu de disputar o segundo turno. Assim, com os seus 22% de votos da rodada inicial tornou-se presidente da República - o menos votado da história argentina. Empossado, abriu as asas. Mediante um calote espetacular da dívida, tirou o país da recessão, reduziu o desemprego e a pobreza, e resgatou das profundezas a autoestima nacional.
Outra marca de seu governo foi mandar abrir processos contra os chefes da ditadura militar, que perderam a garantia da impunidade com a derrogação da Lei da Anistia. O aumento de sua popularidade e a hegemonia da facção sob o seu comando no eternamente fraturado Partido Justicialista o animaram a governar com mão pesada - e corrupção desbragada. Em 2007, com o país dividido, teve o estalo de indicar a mulher, senadora, para suceder a ele. A incógnita é o que Cristina fará para se reeleger: mais, ou menos, kirchnerismo? 

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