quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dez anos da Emenda nº 29 - Elida Graziane Pinto



Elida Graziane Pinto - O Estado de S.Paulo
No dia 13 de setembro completamos dez anos de vigência da Emenda Constitucional n.º 29. Esse "aniversário" passou despercebido para a sociedade em meio ao período eleitoral, mas certamente seus efeitos não têm passado em branco para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). A data marca, na verdade, uma longa trajetória de lutas e tensões num cenário de baixa efetividade do direito fundamental à saúde. Isso porque falta estabilidade e progressividade de financiamento ao SUS.
Os dez anos da Emenda 29, como ficou mais conhecida, sem sua regulamentação impactam negativamente o próprio alcance da proteção de gasto mínimo na política pública de saúde. Tal omissão legislativa pode ser percebida em três níveis cumulativos de esvaziamento do dever constitucional de custeio federativo do SUS.
O primeiro nível reside na tendência de regressividade proporcional que a forma de cálculo do valor devido pela União evidenciou ao longo do período de 2000 a 2010. Isso porque o critério de cálculo do gasto mínimo federal se preocupou apenas com a variação nominal do produto interno bruto (PIB), desconhecendo a necessidade de manter alguma referência de proporção com o crescimento da sua receita corrente líquida.
Na forma do artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), enquanto Estados e municípios devem gastar com a política pública de saúde determinado porcentual fixo da receita de impostos e transferências constitucionais, a União não teve nenhuma vinculação de gasto com o comportamento progressivo, ou não, de sua receita.
Isso, por si só, permitiu ao governo federal despregar-se de qualquer proporção histórica de gasto com saúde em face do volume total de suas receitas. O aumento das receitas correntes federais tem sido, na média, consideravelmente superior à variação do PIB. Por essa razão é que falamos objetivamente em regressividade do gasto federal com saúde, quando observada a proporção de tal gasto sobre o volume anual da receita corrente líquida da União.
No segundo nível de esvaziamento, podemos considerar como tímidos os instrumentos jurídicos de controle da inclusão de despesas outras (que não as diretamente relacionadas com o atendimento gratuito e universal) no quantum devido de despesas mínimas em saúde. A esse respeito, é alarmante o dado apontando pelo Ministério da Saúde de que, embora todos os 27 Estados-membros tenham afirmado que cumpriram integralmente, em 2008, o dever de gasto mínimo em saúde, apenas 14 cumpriram os critérios do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Esse é o teor da Nota Técnica Siops/Desd/SE/MS n.º 19/2010, que avaliou os balanços gerais dos Estados, referentes ao exercício de 2008, quanto ao cumprimento da Emenda Constitucional n.º 29/2000 e da Resolução CNS n.º 322/2003.
Várias ações governamentais alheias à política pública de saúde têm sido contabilizadas como se fossem gastos universais e gratuitos no setor, sem que a sociedade tome claramente conhecimento disso. Como visto, apenas um pouco mais da metade dos Estados da Federação (ou seja, 14 dentre 27) aquiesceu com a máxima eficácia do direito à saúde, segundo o CNS e o Ministério da Saúde.
As manipulações contábeis e financeiras dos gastos dos Estados e da União têm sido alvo de questionamentos isolados e ainda não foram sistemicamente controlados pelo Poder Judiciário. Mas o caminho foi aberto pelo inovador e pedagógico voto do ministro Celso de Mello, do STF, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 45, que admitiu o controle judicial sobre atos políticos e, em especial, sobre o gasto mínimo federal em saúde.
No fim das contas, quem tem arcado com a sobrecarga de demandas sociais e judiciais são os municípios, que não têm recursos próprios nem recebem repasses dos demais entes em aporte suficiente para promover os avanços necessários à implantação do SUS.
O problema que vivemos atualmente passa exatamente pela falta de decisões legislativas e judiciais que valham coletiva e universalmente para corrigir os desvios, pois a saída individual tem distorcido o olhar crítico sobre os impasses no financiamento da política pública de saúde.
Por fim, o terceiro nível de progressivo esvaziamento da força normativa da Emenda 29 vai-se recrudescendo com o decurso do tempo sem sua regulamentação. Isso porque a força integradora do SUS resta mitigada pela falta de critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais.
Sem esses critérios reclamados pelo inciso II do § 3.º do artigo 198 da Constituição, abre-se espaço para a pura e simples omissão federal, ademais de permanecerem inquestionadas as disparidades regionais no âmbito do SUS. Inegavelmente, trata-se de uma lesão perpetrada concomitantemente contra o financiamento da política pública de saúde e contra o próprio pacto federativo.
Eis o legado dos dez anos da Emenda 29 e os desafios postos aos governantes que emergem das urnas neste mês de outubro. Se é certo que esse aniversário não foi motivo de comemoração para a sociedade brasileira, cabe a nós atuar para que os próximos quatro anos de ação governamental sejam mais comprometidos com o dever de progressividade no financiamento do SUS.
Não se trata de exigir tal compromisso como se estivéssemos a cobrar o cumprimento de uma promessa política ou um favor benevolente para a saúde pública. Esse é um imperativo constitucional, porque a máxima eficácia do direito fundamental à saúde é dever do Estado em qualquer dos três níveis da Federação.
PROFESSORA ADJUNTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG, É ESPE-CIALISTA EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO GOVERNAMENTAL DO ESTADO DE MINAS GERAIS 

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