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José Roberto Batochio - O Estado de S.Paulo
O fato não é novo, mas nestas eleições chama a atenção a quantidade de candidatos pitorescos, folclóricos, destituídos de qualificação mínima para integrar o Poder Legislativo. Sobressaem os que se gabam de ignorar o que seja a função parlamentar, ao lado de outros cujos programas têm como proposição central incríveis e mirabolantes propostas. Certo é que o fenômeno traduz efeito colateral da democracia real, não aquela que insistimos em idealizar, atribuindo-lhe a fantasiosa substância aristocrática de que ao poder se reservem os melhores, os puros, os mais capacitados. Não só pelas regras do jogo, que por natureza devem permitir o concurso eleitoral de qualquer do povo, afastando-nos definitivamente do voto censitário que selecionava os eleitores pela renda, mas também como reflexo da composição social brasileira.
O eleitor escolhe aquele com quem se identifica, por uma concreta e magna ou tangencial e fisiológica razão, e a esse poder soberano do povo os aristocratas têm de se curvar. O desdobramento preocupante dessa exuberância democrática é que a cada dia se vê uma depreciação da política partidária na arena em que se disputa o voto.
A presença dos blockbusters eleitorais advém do nosso próprio sistema, de vez que um jogador de futebol, um astro do show biz, um comediante, populares, tendo votação acima do quociente necessário, ajudam a eleger os que vêm abaixo na lista partidária - e assim propiciam a assunção dos mais qualificados que não obtiveram, por si, votos suficientes para serem eleitos. Para eleger as sumidades os partidos recorrem à popularidade dos menos qualificados.
A essa ação oportunista se associa outro elemento, de natureza institucional, não menos repudiável, qual seja o da "criminalização" da atividade política. Não que faltem motivos para tal ofensiva, máxime nos meios de comunicação, mas observa-se que nela se concentram, com o foco de diversionismo, os holofotes mais persecutórios.
Fixando-nos no Poder Legislativo, chama a atenção que nenhuma outra atividade venha sendo escrutinada com mais percuciência que a de senadores, deputados federais, estaduais e vereadores. É lícito dizer que se tal e implacável crivo fosse estendido a outros setores - podem escolher qualquer um, das igrejas à imprensa, do comércio ao futebol, dos serviços públicos à Justiça - o resultado seria igualmente desfavorável.
A política é hoje, essencialmente, uma atividade de risco, posta a priori sob suspeita e perseguida por piloto automático. Mesmo admitindo-se os delitos que pululam no noticiário, convém observar que a eles se segue uma vara de Catão manejada pelo moralismo supralegal do Ministério Público. Um pequeno erro, uma ínfima omissão de rito, uma desatenção, uma vírgula fora dos manuais administrativos, mesmo sem dano ao erário, são suficientes para se construírem artifícios simbólico-emocionais e de legitimação, apontar-se grave improbidade, comprometer-se um patrimônio honestamente granjeado na vida privada e arrasar-se uma reputação.
Por essa vereda da criminalização ampla, geral e irrestrita avança a filosofia tabaréu do "pior não fica". Com a espada de Dâmocles pendente, muitos dos que poderiam dar importantes contribuições à coletividade preferem renunciar à vida pública.
Infelizmente, as respostas que a sociedade - e o Legislativo por ela intimidado - tem oferecido para moralizar a atividade política são emendas que pioram o soneto. É o caso da Lei Complementar n.º 135, chamada da Ficha Limpa, que viola a Constituição, foi aprovada e imposta pelo Congresso Nacional e até aqui elasticamente interpretada pela Justiça. Se ninguém pode ser considerado culpado senão por sentença condenatória irrecorrível, é juridicamente inaceitável que pela via do estupro constitucional se queira defender a virgindade da política.
Sem falar do constitucional e incontornável pressuposto da anualidade de norma que altera o jogo eleitoral (artigo 16 da Constituição), os tentáculos da citada lei foram projetados abusivamente para o passado, em efeito retroativo, tornando passível de punição uma circunstância que quando concretizada não o era. Violar-se-ia assim um dos mais elementares princípios do Direito, o de que as censuras legais e as respectivas sanções devem atender à prévia legalidade (nullum crimen nulla poena sine praevia lege).
Nem merece resposta o contra-argumento de que se trata de lei eleitoral - e não penal - e que a punição consistente na supressão da capacidade eleitoral passiva (ser votado) não é pena criminal e, por isso, não incidem os princípios constitucionais da presunção de inocência e da irretroatividade da lei gravosa... Ora, numa democracia pode haver bem jurídico maior do que o cidadão escolher e ser escolhido representante do povo por meio do sufrágio universal, direto e secreto? Como, então, dizer-se que a garantia constitucional da não culpabilidade não o tutela?
A convicção de que há juízes fiéis à ordem constitucional permite supor que, quando submetida a matéria ao Supremo Tribunal Federal, prevaleça o sábio entendimento de Eros Grau, que acaba de deixar aquela Corte levando a convicção de que "a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente, inconstitucional", conforme declarou em entrevista à imprensa. A "moralidade pública", assoalhou o notável jurista, "sujeita-se a várias interpretações, de vieses particularistas, até ideológicos ou partidários, e, portanto, deve estar subordinada a um parâmetro geral e maior, o do Estado de Direito". E, por tais parâmetros, tem "ficha limpa" todo cidadão que não teve a sentença condenatória transitada em julgado.
ADVOGADO, FOI PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM
DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB)E DEPUTADO FEDERAL
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