domingo, 18 de abril de 2010

Em 3D, índios dizem que vão lutar contra Belo Monte

Cineasta de "Avatar" quer gravar documentário sobre contenda indígena contra usina

James Cameron dorme na rede e come feijão com carne de porco caçado na aldeia durante viagem a terras indígenas no Pará

SOFIA FERNANDES
ENVIADA ESPECIAL A ALTAMIRA

"Vamos matar e morrer pelo nosso povo", disse o cacique. Seu peito liso, adornado com colar de miçangas, encontrou o apoio de uma camisa entreaberta, pelos à mostra. O abraço do índio custou ao homem branco uma viagem de barco de 12 horas pelos rios Xingu e Bacajá, partindo de Altamira (PA), subindo correnteza e cortando a linha imaginária onde está prevista a construção de uma das duas barragens da usina de Belo Monte, na chamada Volta Grande do Xingu.
Para o cineasta James Cameron, o convite para ir à aldeia Mrotidjam, na terra indígena Trincheira Bacajá, foi um empurrão para credenciar seu mais novo filme, "Avatar", como uma obra de referência em engajamento ambiental, e não apenas uma alegoria tecnológica. A história do Xingu contra Belo Monte casou com o mundo fantástico de Pandora e vice-versa, um achado para Cameron. "Foi como encontrar o navio Titanic no fundo do mar." O cacique Raoni, líder da etnia caiapó, esperava por Cameron com mais uma dezena de lideranças indígenas da bacia do Xingu, que também viajaram por horas pela "casa dos deuses", significado de Xingu. O sol já se punha quando a comitiva gringa chegou ao território indígena, percebidos de primeira pela criançada na beira do rio.
O Brasil se confirmou para os visitantes quando estes avistaram um papagaio no chão, e logo a seguir dezenas de índios fumando seus cachimbos e ensaiando suas danças. A equipe de Cameron contava com duas pessoas para registrar a expedição, que acumularam mais de mil gigabytes em fotos e vídeos ao longo da viagem. A proposta do cineasta canadense é de, no próximo mês, reunir uma equipe para voltar ao Xingu e gravar um documentário em 3D sobre a contenda indígena contra Belo Monte. Será um tipo de experimento para testar audiência, um material a ser incorporado a uma edição extra do DVD de "Avatar", explicou Cameron.
O lábio alargado de Raoni é seu eterno lembrete de que o esforço para falar deve sempre valer a pena. Sem pressa, debulhou seu discurso fermentado por décadas para Cameron, assim como fez com Sting, em 1989. Foi quando ganhou projeção mundial e aprendeu que o homem estrangeiro pode fazer mais barulho que uma tribo em fúria aos ouvidos de quem interessa.
Raoni tem fala reiterada contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Lula prometeu que não faria a barragem", disse o chefe caiapó. É recorrente ouvir dos líderes indígenas que Lula é o pior de todos, o mais implacável em relação a questões ambientais. Com a ajuda de representantes de organizações, como a Amazon Watch e o Isa (Instituto SocioAmbiental), os índios formularam uma carta de pedidos. Querem ser ouvidos no processo de construção da hidrelétrica e querem que Cameron interceda por eles com o governo. Na lista, há também o pedido de ajuda financeira ao cineasta, pois querem reunir com mais frequência os chefes de aldeia que serão afetados por Belo Monte, caso construída nos moldes atuais.
O litro de gasolina na região, usada para alimentar as voadeiras, custa cerca de R$ 2,90. O cineasta acenava positivamente com a cabeça todo o tempo, antes mesmo da tradução do caiapó para o português, e do português para o inglês.
Esteve sempre ladeado por sua mulher, Susan, e eventualmente pelos atores de "Avatar" Sigourney Weaver e Joel More. Dormiu na rede, comeu feijão com carne de porco caçado na aldeia e estudou mapas, inclusive durante a longa viagem de voadeira. "Sou um macaco curioso", disse.
Com o dedo percorrendo o papel, Cameron encontrou a aldeia Mrotidjam, de etnia xikrin, cravada no leito do Bacajá, e ouviu a explicação de que o lugar deve sofrer com a seca do rio, caso a barragem de Belo Monte seja construída. A aldeia depende totalmente dos recursos da água para viver, comer e se locomover. Algumas aldeias correm o risco de perder o fluxo de água que permite a navegação, que já é comprometida nas épocas de seca, de agosto a dezembro.
Cameron acha que o seu papel, como um "homem do futuro", como gosta de se definir, é evitar que aconteça no Brasil o mesmo que os Estados Unidos e seu povo indígena enfrentaram. Ele diz não entender a objeção que sofreu de parte da opinião pública sobre sua visita e descarta ser uma ameaça à soberania da Amazônia e do país.
Alega que não há o interesse em criar uma entidade no Brasil para a questão de Belo Monte, mas estuda apoiar entidades, como a Amazon Watch. "Não quero intervir diretamente na estratégia do povo e não quero gerar disputa entre os organismos que já existem", afirmou.
Cameron cogita criar um fundo para financiar algumas ações a favor do Xingu e de energias renováveis.

A repórter SOFIA FERNANDES viajou a convite da ONG Amazon Watch

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